quinta-feira, dezembro 28

A pena de morte

A Saddam Hussein foi reconfirmada a sentença à morte por enforcamento. Motivo? O extermínio de 148 xiitas ordenado por ele. Tão somente isto foi suficiente para o sentenciar à pena capital. E digo, tão somente isto, porque desde a invasão do Iraque por forças norte-americanas e britânicas já morreram milhares de pessoas em resultado das mais diferentes causas, mas todas relacionadas com a ocupação do país. Claro que resisto à tentação primária de perguntar quantos dos responsáveis por todo este morticínio deveriam ser condenados à forca? Não. Não caio nessa tentação, porque fazê-lo era igualar-me a todos quantos aceitam a condenação à morte como forma de punir os grandes criminosos.
Saddam Hussein foi um facínora, um ditador cruel que eliminou fisicamente quem se lhe opunha, que mandou matar gente inocente por pertencer a grupos religiosos diferentes do dele ou a etnias distintas da sua, que governou com mão de ferro. Foi tudo isso, é certo, contudo, sentenciá-lo à morte não traz à vida todos quantos morreram por força da sua vontade e simplesmente denota um sentimento de vingança que iguala os juízes ao réu. Invocam-se razões humanitárias para julgar o ditador e, em seguida, matá-lo.
Ocorre perguntar: - Onde está o sentido humanitário de quem condena à morte um outro ser humano? Em termos absolutos uns e outros não estarão a actuar de forma igual? Ontem era o ditador quem, por razões de Estado, de segurança, de política interna, mandava matar; hoje, em nome da democracia, condena-se o vencido a morrer antes da Natureza lhe pôr cobro à vida. Onde está a lógica? Por mim, só vejo, muito claro, um sentimento de vingança. Uma vingança mesquinha.
E pressinto que alguns dos meus leitores abanam as cabeças ao lerem as linhas anteriores. Abanam em sinal de não aceitação das minhas razões. Para esses a pena de morte deve ser executada quando serve para punir um criminoso, um bárbaro criminoso, mesmo que tenha agido em nome da razão de Estado. Todavia, também sei que de entre muitos que não me compreendem existem acérrimos defensores do direito à vida quando se trata de permitir e liberalizar o aborto. Defendem, com toda a força da sua argumentação, que um feto tem direito a viver, que é um crime acabar com uma vida que ainda não tem registo como cidadão.
Pergunto: - Onde está a coerência? Onde está a coerência de se aceitar a pena de morte aplicável a um criminoso e não aceitar a liberalização do aborto?
Terá, por acaso, o feto consciência de si mesmo? E o criminoso? Será que o Saddam Hussein de hoje é exactamente igual ao mesmo homem que há dez anos mandava matar, sem comiseração, centenas ou milhares de pessoas?
Do mesmo modo que a mulher que faz um aborto pode ficar traumatizada, para toda a vida, pelo peso do remorso, também teremos de admitir que, ao perder o poder e ao ganhar consciência da dimensão dos seus crimes, o assassino passa a viver atormentado pelos seus fantasmas. Depois do aborto e depois da condenação quer a mulher quer o assassino são pessoas diferentes; não são exactamente os mesmos que eram antes da prática dos actos que lhes fizeram nascer o remorso e o sentimento de culpa. E não há tribunal nenhum que consiga pesar e avaliar o remorso, o arrependimento. Assim, também ninguém pode afirmar que a mulher que faz um aborto e o criminoso que é condenado são iguais ao que eram antes, que repetiriam os seus actos se soubessem que poderiam ter de passar pelo mesmo tormento interior.
Dirão alguns: - Há assassinos que são verdadeiros psicopatas! Claro. Também há mulheres para quem o aborto se banalizou de tal forma que não têm qualquer tipo de remorso nem consciência do seu acto. Mas isso justifica tratamentos diferenciados ou semelhantes?
Os psicopatas tratam-se, não se matam, privam-se de liberdade para sempre, afastam-se da sociedade onde não sabem viver.
Saddam Hussein merece a prisão perpétua – tal como a mereciam, provavelmente, noutras circunstâncias, alguns daqueles que o mandaram julgar – contudo, o medo que rói os seus algozes é tanto que preferem vê-lo morto. Morto não ressuscitará; vivo, em cumprimento de pena perpétua, pode um dia ser indultado e ser posto em liberdade. Isso, para quem o manda julgar, é inadmissível. Ora, se o é, a justiça que invocam tem um só nome: vingança. E, estranhamente, ao contrário do assassino e da mulher que mata o feto que transporta, vão dormir repousadamente – tão repousadamente como dormia Saddam Hussein quando dono do Poder mandava matar em nome do bem-estar da sociedade – tal é a consciência que têm de um dever social correctamente cumprido!
Se a vida é dada ao Homem pela Natureza só esta lha pode tirar. Democracias assentes em direitos à pena de morte são aberrações que nos tempos de hoje não podem nem devem ser aceites. Não há crime que a justifique.

domingo, dezembro 17

Pinochet, eu e a censura

Pouco passava do meio da minha comissão militar em Moçambique, corria o ano de 1968, quando vi pela primeira vez o meu nome a encabeçar uma crónica nas páginas de um jornal.
A minha estreia foi feita pela mão exigente, mas bondosa e protectora, do meu Pai. Foi ele quem me iniciou nesta coisa de escrever para os outros e me incentivou no caminho do jornalismo - mesmo que não profissional. Devo-lhe o facto de ter publicado a primeira crónica nas páginas do mais antigo jornal português: o Açoriano Oriental. Crónica ingénua como tudo o que se escreve na juventude e quando se vive animado de ideais grandiosos (que o tempo e a experiência se encarregam de esbater). Contudo, logo no primeiro escrito publicado senti a acção do lápis azul da Comissão de Censura Prévia. Cortaram e retalharam algumas frases e ideias que o chefe de redacção, propositadamente, não compôs para se perceber - e eu também - a descomunal ignorância e insensibilidade dos censores.
Ao contrário do que terá acontecido com muitos estreantes, não desisti; antes pelo contrário, esse acto dos vigilantes da palavra e do pensamento, no Portugal da ditadura, acicataram-me a vontade e o desejo de refinar o jeito de dizer o que queria, passando nas malhas da sua monumental ignorância e ausência de perspicácia dos censores.
Os anos correram. Passei a colaborar regularmente, também, com a Gazeta de Coimbra, que várias vezes me honrou ao atirar para editorial muitas das minhas crónicas. Regressei a Moçambique, pela segunda vez, e lá recebi convite de gente conhecida e ligada à Emissora do Aero-Clube da Beira para com eles colaborar. Colocou-se-me uma questão, que passo a expor.
Escrever para uns jornais de pequena divulgação nacional - quer o Açoriano Oriental quer a Gazeta de Coimbra não chegavam a Lisboa, às bancas de venda pública da imprensa, por se tratarem de folhas regionais que cumpriam o seu importante papel localmente - era, para mim, na época tenente e capitão, pouco relevante, pois não punha em causa a minha estabilidade na vida militar. Contudo, numa pequena cidade como era a Beira, no ano de 1973, onde toda a gente se conhecia, já se tornava problemática uma visibilidade excessivamente pública. Pensei como havia de tornear a situação. Fiz duas opções: em primeiro lugar, escreveria uma crónica por semana sobre política internacional - bastante mais inócua do que os faits divers nacionais; depois, escolheria um pseudónimo. Com esta camuflagem estaria, julgava eu, mais ou menos “encoberto” dos ouvidos dos comandantes das unidades da Força Aérea estacionadas na área da cidade. Acresce que a confiança política nos responsáveis pelos programas radiofónicos era tal – e, em especial, no engenheiro Jorge Jardim verdadeiro “dono” da emissora – que tudo o que se dizia não precisava de ser previamente autorizado pela censura.
Assim, lá comecei, sob a “capa” de Luís de Avelar, a debitar as minhas opiniões sobre o que se passava pelo mundo. A princípio, gravava a crónica, mas mais tarde, depois de ter adquirido prática e de saber como controlar situações inesperadas, passei a fazer a leitura dos meus textos em directo.
Pelos canais que os promotores de programas de rádio tinham, naquela época, para sondar a opinião pública fomos sendo informados da audiência do meu comentário semanal. Havia gente que gostava das minhas intervenções e esperava com ansiedade a quarta-feira, depois das 21 horas, para escutar a minha crónica. Da censura, nem novas nem mandadas! Se ouviam, ou não percebiam ou não encontravam matéria para discordância. No entanto, já assim não aconteceu com o comandante do Batalhão de Caçadores Pára-quedistas – unidade onde estava colocado – pois mandou o oficial de operações inquirir-me quanto ao facto de eu falar na rádio. Não escondi, assumindo a responsabilidade, embora me tenha escudado no uso do pseudónimo inibidor de se relacionar o autor das crónicas com um oficial da Força Aérea. O assunto ficou esquecido, embora soubesse que tanto aquele oficial como o comandante do Batalhão eram meus fiéis ouvintes. Não, por certo, com o desejo de me escutarem, mas para garantirem que eu não era um elemento subversivo infiltrado nas fileiras da unidade.

Quando Augusto Pinochet tomou de assalto o Poder político no Chile, como não podia deixar de ser, fiz o meu comentário centrado na figura de Salvador Allende e no quanto tinha querido trazer os mais desfavorecidos elementos da sociedade chilena para o limiar do bem-estar, através da aplicação de medidas de justiça social.
Dessa vez, face à actuação bárbara e oportunista dos militares, deixei-me levar pela emoção e escrevi sem rebuço o que pensava. Expliquei que se derrubara uma democracia para se implantar uma ditadura, que a humanidade ficara mais pobre por se terem alcandorado ao mando de um Estado militares que não iriam respeitar as liberdades mais essenciais. Enfim, disse o que era esperado calar-se, tanto mais que o fazia na segunda maior cidade de Moçambique, território onde se combatia pela libertação colonial.
Dessa noite em diante os meus textos tiveram de passar a ser previamente censurados. Era o único em toda a Emissora do Aero-Clube da Beira a quem tal se impunha. Confesso que, ao contrário de me moderar, embraveci no teor dos meus comentários. Passei foi a usar de toda a artimanha de que já me socorria em Portugal para ultrapassar o raciocínio rectilíneo dos censores. Disse sempre o que quis, contudo de uma maneira mais encapuzada, onde as pausas, os silêncios e as inflexões de voz dessem aos textos os sentidos que os olhos dos míseros censores não conseguiam vislumbrar.
Como se vê, lá de tão longe, Pinochet também conseguiu que me tentassem calar. Não lograram os esbirros nacionais fazê-lo, pelo menos na medida em que o desejavam.
A Liberdade tem a força da Fénix, renasce das próprias cinzas.

quarta-feira, novembro 29

Eu, o surrealismo e Mário Cesariny de Vasconcelos

Morreu, no dia 26, com 83 anos uma das mais destacadas figuras da corrente surrealista portuguesa: Mário Cesariny de Vasconcelos.
Posso dizer que não o conheci pessoalmente o que corresponde a uma quase verdade e, ao mesmo tempo, a uma quase mentira. Vejamos esta afirmação paradoxalmente verdadeira.
Na idade em que se «conhecem» as pessoas nunca contactei com Mário Cesariny, isto é, na idade da razão não tive o ensejo de lhe falar, de estar perto dele. Contudo, na minha meninice, pelo menos uma vez, estive com o poeta. E foi no dia mais marcante do movimento surrealista português. Não foi um encontro feliz, mas teve algo de quase surreal. Eu conto.
Tanto quanto me lembro, corria o ano de 1948 quando se fez a primeira exposição surrealista em Portugal (aqui, entenda-se, Lisboa!). Foi num prédio de esquina, quando se vem de «eléctrico» da Graça para a rua da Conceição, mesmo na volta da Sé, frente às traseiras da casa onde, tradicionalmente, se diz ter nascido St.º António. Foi ali, creio, no segundo piso. Tinha eu seis anos.
Um meu primo, treze anos mais velho, o Fernando Alves dos Santos, fazia parte do grupo dos surrealistas (Diário Flagrante, 1954 e Textos Poéticos, 1957).
Jovem culto, de espírito aberto, vivendo uma rebeldia que os anos e o afastamento da actividade literária acabaram matando, o Fernando estava exultante com a exposição. Convidou toda a família para ir, em quase romagem, até à Sé, quer dizer, até ao largo da Sé, para ver com atenção e cautela a produção daquele pequeno núcleo que ousava romper com tradições e paradigmas. Entre ele e o António Maria Lisboa havia uma longa amizade que vinha dos tempos da escola primária e aquele, a par com Cesariny, era um dos grandes esteios deste grupo inicial.
Para a exposição, o Fernando contribuíra com vários desenhos, alguns poemas e um velho baú que havia pertencido ao meu avô e o acompanhara em todas as expedições militares que fizera a África e a França; por dentro forrava-o um papel de cores garridas, mas já debotadas pelos anos. O Fernando via nele todo um mundo de fantasia e sonho que eu, nos meus poucos anos, por mais que olhasse só distinguia o que realmente conseguia ver. Nada mais! Depois, fazia-me imensa confusão aqueles desenhos de olhos fora dos rostos, os corpos sem pernas nem braços, mas com enormes buracos no tronco ou na barriga, os braços fora de sítio, ora sobre as cabeças ora quase no lugar das pernas. O meu primo bem catequizava a irmã dele e a minha, tentando despertar-lhes o entendimento para o que elas não compreendiam e eu, miúdo, desejoso de perceber as conversas dos adultos, menos ainda. Da família, só o meu pai parecia disposto a «entrar» naquela quase loucura, como então, os ignorantes da época, achavam tais manifestações de arte.
Uma noite – julgo que terá sido mesmo na da abertura oficial da exposição – lá fomos, o meu pai, a minha irmã, aquele que acabaria por ser meu cunhado e eu, da zona da Graça, onde morávamos, até ao largo da Sé para vermos os trabalhos dados à mostra desta Lisboa ignara e arredia do que lá por fora era já bem conhecido. Lá fomos, pois, assistir ao acto, creio, inaugural com récita de alguns poemas pelo Mário Cesariny de Vasconcelos. Sentámo-nos nas primeiras filas de cadeiras, bem próximo do ponto onde o anfitrião ia dar a conhecer algumas das suas produções. Aí começou a minha e, provavelmente, a desgraça do Cesariny. Torno a contar.
Atento ao que se dizia, talvez excessivamente atento, a dado passo reparo que o orador declamava um poema sobre coisas estranhíssimas tais como escrever num papel com uma caneta sem tinta ou vice-versa (porque, para o efeito, é indiferente)... Era um discurso perfeitamente incoerente, incompreensível – nos parâmetros pelos quais a minha sensibilidade artística se pautava então – que me pareceu dito por um louco varrido. Na minha mais pura inocência desfraldei-me em risos incontidos, gargalhadas sonoras que levaram o meu pai a impor-me imediato silêncio visto o Cesariny ter interrompido a leitura, face a tão «inaudita» atitude de uma criança. Calado ele, calei-me eu. Retoma o poeta a palavra e continua a sair-lhe pela boca tudo quanto eu achava incoerente e de novo rebento em gargalhadas. Desta vez o Mário Cesariny de Vasconcelos, fuzilando com os olhos o meu progenitor enquanto o meu primo Fernando Alves dos Santos quase arrancava a farta cabeleira de tanto se arrepelar, pediu, em tom irrecusável, que o pai da criança a levasse para fora da sala.
Lá fomos os dois. O meu pai apelou a todo o meu bom-senso infantil e voltámos passados uns minutos. Ficámos de pé, lá no fundo. A leitura continuava e, mais uma vez, não tive travão na gargalhada cristalina que me saiu boca fora. Foi, de facto, a última. O meu pai arrastou-me para o patamar da escada, fora de portas, de modo a conter-me o riso que, em mim, sempre foi fácil.
O Fernando Alves dos Santos morreu há 14 anos – curiosamente também em Novembro – se calhar sem nunca, no fundo de si, me ter desculpado o pouco respeito pela nova corrente literária e artística que também ele ajudara a fazer despontar em Portugal. Naturalmente, o Cesariny terá esquecido o episódio, ou talvez não. Verdade é que não se me apresentou ocasião para lhe recordar o facto e pedir-lhe desculpa pela minha inocente e quase surreal sessão de gargalhadas.

quarta-feira, setembro 20

Ceuta: o princípio ou o fim?

Em 1411, D. João I, que havia sido mestre da Ordem Militar de Avis, alcançou a possibilidade de negociar com Castela um tratado de paz que, muito embora não fosse definitivo, dava-lhe já a garantia de cessarem por muito tempo as hostilidades com aquele reino peninsular. O estado de guerra arrastava-se, como é sabido, desde 1383, quando D. Fernando I falecera e D. Juan de Castela, casado com D. Beatriz, filha do monarca português, exigira assenhorear-se do reino. A burguesia de Lisboa e de outras cidades revoltou-se e levou o povo – a chamada «arraia miúda» - a tomar de assalto os castelos e casas senhoriais dos nobres que se mostraram dispostos a acatar o preceito medieval de jurar fidelidade ao novo soberano, como parecia estar certo segundo a tradição. Coube a D. João o encargo – mais imposto que assumido de boa vontade – de capitanear a revolta.
Estoicamente todos os defensores da nacionalidade manifestada pela primeira vez na História de Portugal souberam sofrer os azares da guerra, mas, pela arte de pelejar de D. Nuno Álvares Pereira e o auxílio de bons combatentes ingleses, no campo de Aljubarrota, no dia 14 de Agosto de 1385, foi derrotado o exército de Castela cujo rei, daí em diante, pouco ou nada mais se empenhou na luta pelos direitos que julgava ter sobre o trono português.
Vinte e seis anos depois, D. João I, com a paz celebrada, via-se consagrado rei de Portugal, sem a contestação de Castela. Tão importante era o facto para o soberano português que alvitrou a possibilidade de, durante um ano, se fazerem festejos em Lisboa para comemorar o acontecimento. No decorrer dessa festa, pensava o rei, haveria oportunidade de organizar as justas necessárias para, com brilhantismo, armar cavaleiros os filhos mais velhos, D. Duarte, D. Pedro e D. Henrique.
Conta a crónica (devida a Fernão Lopes, mas usualmente atribuída a Zurara) que, conversando sobre o assunto, os infantes se manifestavam desagradados da ideia paterna, por acharem mais importante conseguirem a sagração na ordem da cavalaria em acto verdadeiro de verdadeira peleja. Tê-los-á ouvido o vedor da fazenda João Afonso que lhes sugeriu Ceuta, terra de Mouros, onde lhes seria fácil guerrear por uma «boa causa».
Ainda hoje se discutem as verdadeiras razões da escolha da praça do Norte de África para iniciar uma peleja contra os islâmicos. Discute-se, porque, para além do já por mim relatado, nada mais se sabe dos reais motivos da decisão; o que fica claro é que foi um burguês quem alvitrou a conquista. E o alvitre transformou-se em realidade sem sabermos hoje os motivos exactos que impulsionaram o hesitante D. João I (até ao último instante ainda pediu conselho sobre a justeza da missão) a tomar de assalto e surpresa o porto e a cidade de Ceuta.
Terá sido para aliviar as costas de Portugal da constante acção dos piratas muçulmanos que saqueavam as povoações indefesas? Terá sido para conseguir suprir a deficiência de produção de trigo no reino? Esperava poder substituir-se aos Berbéres e continuar Ceuta a ser o grande centro de recepção de mercadorias vindas do Oriente? Terá querido impedir Castela de se expandir para África, ganhando um maior poder do que aquele já possuído na Península? Desejava manter ocupada a jovem nobreza do reino, dando-lhe uma guerra como entretém? Pensava aliviar tensões internas existentes entre a velha nobreza enriquecida e a mais jovem que aspirava a auferir pingues benefícios da coroa? Terá sido uma simples demonstração de força perante Castela de modo a consolidar a paz alcançada em 1411? Seria a ambição de controlar a entrada e saída do Mediterrâneo, garantindo, deste modo, a livre navegação no mar Atlântico que se abria face à costa portuguesa?
Estas e tantas outras hipóteses são plausíveis perante o silêncio da documentação coeva. Todavia, seja como for, a conquista da praça no Norte de África abriu um ciclo novo na História de Portugal: o reino, com as fronteiras peninsulares estabilizadas, podia alargar-se para além do mar depois da demonstração de força que foi feita no assalto aos infiéis dos Algarves africanos.
Na realidade, alargou-se, nos anos que se seguiram, não pela conquista, empunhando armas, mas achando novas terras no meio do Atlântico ou ao longo do continente africano.
Não relatarei essa expansão que, muito provavelmente, constituiu o ponto mais alto de toda a História de Portugal (não cabia no curto espaço deste apontamento, nem vinha a propósito). No entanto, vou fazer algo que aos historiadores é vedado, mas autorizado aos politólogos e aos estudiosos da relações internacionais: explorar o condicional da História, isto é, colocar hipóteses académicas capazes de permitir imaginar como teria sido se não tivesse sido como foi.
Ora, como já disse, foi com a conquista de Ceuta que se iniciou a Expansão Portuguesa. Imaginemos, por momentos, que D. João I, na senda das suas dúvidas e incertezas, tinha feito abortar o projecto apresentado pelos infantes e teimara na realização dos festejos em Lisboa; que D. Henrique nunca se interessara pelas navegações e se deixara a outros povos o encargo de desvendar as terras desconhecidas. Como teria sido o evoluir da vida nacional?
Na impossibilidade de saber o que não foi nem aconteceu, resta-me dar largas à suposição, admitindo como constante quase toda a restante História da Europa.
Portugal teria, com grande probabilidade, desenvolvido mecanismos de sobrevivência autónoma na Península cada vez mais unida e ampla sob a hegemonia de Castela. Ter-se-ia ligado por alianças aos Estados que guerrearam a Espanha o que supõe o entendimento com a Inglaterra, mas também com a França e eventualmente com a Áustria ou a Prússia, já que não tinha que privilegiar a boa relação com a potência marítima – no caso, a Inglaterra. A política externa de Lisboa teria estado mais dependente dos centros de decisão terrestre do que dos marítimos. Portugal teria «aprendido» as regras da diplomacia complexa das potências europeias ao contrário de se refugiar no comércio e exploração dos territórios de além-mar; naturalmente, haveria de ter de arrancar da terra a sua sobrevivência, tornando os Portugueses num povo laborioso, menos dedicado ao comércio e mais empenhado na indústria, talvez mais agrícola. Portugal e os Portugueses teriam sabido, por experiência vivida, que não se resolvem os grandes problemas por recurso a um D. Sebastião chegado numa manhã de nevoeiro; que, a garra ancilosante da Igreja Católica era contraproducente e tê-la-iam sacudido, deixando livre os caminhos para a livre iniciativa e o livre curso do pensamento.
Para não alongar a divagação pelos condicionais da História, resta-me deixar ao leitor paciente esta dúvida que me assalta nos momentos de reflexão: a conquista de Ceuta terá sido o começo ou o fim de um caminho diferente para Portugal? Terá sido o começo de uma nova maneira de estar na Península e na Europa ou o fim de um curto caminho continental? É a Ceuta que devemos assacar responsabilidades de ser como somos na actualidade ou não?
Fica a interrogação que, obviamente, não pode ter resposta, mas pode inquietar todos quantos se comprazem no deleite da especulação intelectual.

quarta-feira, agosto 30

Um ano

Passou um ano exacto sobre a data em que resolvi criar o «Desblogueando».
Confesso que, logo à partida, foi uma aposta menor, porque resolvi incidir o meu maior esforço no outro blog, o «Fio de Prumo». Reservei este para uma temática mais internacional. Depois vi que era difícil desdobrar-me pelas múltiplas actividades que me envolvem. Optei, já mais tarde, por vocacionar o «Desblogueando» para a História de Portugal, deixando por aqui uma espécie de crónicas soltas sobre figuras e factos do nosso passado.
Julgo que, finalmente, acertei no rumo. Contudo, apontamentos dessa natureza não podem ser escritos ao “correr dos dedos sobre o teclado”; exigem uma maior ponderação e um cuidado mais apurado na redacção. Isso justifica o espaçamento temporal entre cada crónica.
Naturalmente, não é um blog destinado a ser lido por todos os «curiosos» da blogosfera. Assim, a procura é menor. Isso não me preocupa. A recompensa chega-me através de saber que alguns estudantes têm utilizado este sítio para colher informações e ideias.
Para quem habitualmente visita o «Desblogueando» fica a promessa de que vou continuar nesta revisitação interpretativa da História Pátria. Espero que gostem.

quinta-feira, agosto 10

D. Fernando I e o problema hegemónico

Como mera curiosidade, antes de entrar no tema que dá título ao apontamento de hoje, gostaria de recordar que houve na História de Portugal dois reis de nome Fernando. Raro é que os mais versados nestas temáticas sejam capazes de identificar o segundo– porque o comum, hoje em dia, é ninguém saber os nomes dos reis e dos presidentes. Aqui fica a explicação para esclarecer dúvidas.
Em toda a História da Monarquia portuguesa só foram rainhas duas mulheres: D. Maria I e D. Maria II, ambas na quarta dinastia. Acontece que as duas optaram por, após terem sido mães, elevarem os respectivos maridos à condição de rei consorte. Deste modo, D. Maria I, casada com o seu tio (irmão do pai, D. José) fez dele o D. Pedro III que, normalmente falta na enumeração dos monarcas e, D. Maria II, casada com D. Fernando de Saxe-Coburgo-Gotha, depois de ter enviuvado, logo após o matrimónio, de D. Augusto de Leuchtenberg, fez dele o segundo dos Fernandos de Portugal.
Explicação sem interesse, a anterior, serve só para mostrar alguma erudição sobre pormenores da nossa História.
Entre D. Fernando I e D. Fernando II decorreram vários séculos de ricas e importantes ocorrências. Iniciou o primeiro o seu reinado no dia 18 de Janeiro de 1367, data da morte de D. Pedro, seu pai.
Em Castela, Henrique de Trastâmara – Henrique II – meio irmão do monarca daquele reino, havia ascendido ao trono à custa do assassinato de Pedro I. A guerra civil instalara-se. O casamento de D. Fernando, ainda infante, em tempo de seu pai, havia sido aprazado com uma das princesas castelhanas. Não chegou a realizar-se.
Na Europa vivia-se a Guerra dos Cem anos que ainda não tivera reflexos na Península. O grande cisma do Ocidente dividia a cristandade entre a obediência ao papa de Avinhão e ao de Roma. D. Fernando, com todo o clero de Portugal, era adepto da tradição romana.
Ao sentar-se no trono português o novo monarca herdou um reino com as fronteiras consolidadas, os poderes da nobreza e do clero suficientemente dominados e, acima de tudo, um tesouro financeiro em boa ordem. Portugal era um reino estável numa Europa ainda à procura dos seus limites políticos e culturais.
A situação política no reino vizinho e a conjuntura interna em Portugal levaram a que D. Fernando, invocando a condição de bisneto de D. Sancho, rei de Castela, pretendesse para si o trono usurpado por um assassino. Fernão Lopes é bem explícito nesta ambição real: «posto que alguns digam que elle não tomou n’esta guerra senão titulo de vingador da morte de el-rei D. Pedro, seu primo, isto não foi d’esta guisa; mas faziam entender a el-rei, e elle assim o dizia, que pois el-rei D. Pedro era morto que elle ficava herdeiro dos reinos de Castella e de Leão, cá era bisneto legitimo d’el-rei D. Sancho de Castella, neto da rainha D. Beatriz, filha do dito rei D. Sancho. Porém elle nunca se entremetera de começar tal demanda, nem buscar esta avoenga de tão longe, se não foram os logares que se lhe deram de seu grado e os muitos fidalgos que se vieram para elle, que lhe isto faziam entender».
Realmente, em favor de D. Fernando manifestaram-se os senhores de Samora, Cidade Rodrigo, Alcântara, Valença de Alcântara, Orense, Corunha, Tui e mais umas quantas cidades da Galiza. Ao mesmo tempo, houve fidalgos castelhanos que, por se manterem fiéis à causa de D. Pedro I, ofereceram os seus serviços ao monarca português, pedindo-lhe guarida. Nesta conjuntura, D. Fernando dispôs-se à guerra.
Foi, durante a primeira dinastia, a única vez que o rei de Portugal aparentou desenvolver qualquer interesse hegemónico sobre Castela. E tal acontece, porque o quadro conflitual surgia favorável a D. Fernando, demonstrando que o suporte para tais aventuras resulta da concorrência de factores endógenos e exógenos.
Sempre que na guerra só se levam em consideração um dos dois tipos de factores mencionados a vitória está seriamente comprometida. Curioso foi que, mesmo gozando de uma conjuntura aparentemente auspiciosa, D. Fernando viu derrotado o Exército português. Não nos esclarece o cronista, contudo, que, muito naturalmente, a vitória tenha escapado das mãos do monarca português, porque os mais elementares executantes da contenda, os soldados anónimos, não a tomavam nem sentiam como coisa sua. Na guerra, para que o querer do general seja exequível é necessário que o soldado assuma pertencer-lhe a vontade de quem manda.
Foram três as tentativas de D. Fernando: a primeira, de Junho de 1369 ao início de 1371; a segunda, em Dezembro de 1372, embora por iniciativa de Henrique II, teve como origem o casamento de D. Fernando com Leonor Teles (faltando ao compromisso de se consorciar com D. Leonor de Castela, filha do monarca vizinho, como ficara acordado em Alcoutim) e a aliança que o rei português havia feito com o duque de Lencastre, filho segundo de Eduardo III de Inglaterra, pretendente, como ele, ao trono de Castela; o tratado de paz, depois de uma derrota sem honra, foi assinado, em 24 de Março de 1373, em Santarém; a terceira e última guerra, iniciada por D. Fernando, no ano de 1381, com escaramuças no Alentejo, decorreu entre dois males: por um lado, o provocado pelos Ingleses, soldados do conde Cambridge, vindos em auxílios das tropas do rei, os quais se comportaram como em terra conquistada e, por outro, os roubos e violências que os Castelhanos levaram a cabo no cerco de Lisboa, em 1382; a incompetência dos Portugueses em fazer a guerra foi tal que D. Fernando (o primeiro a desinteressar-se da superior orientação do conflito, provavelmente por já se sentir doente) negociou a paz, à revelia dos Ingleses, com João I de Castela, filho e sucessor de Henrique II. Por causa deste entendimento chegou-se a um desastroso acordo para Portugal, de modo que ficou em risco a independência do reino como nesse ano se verificou depois da morte de D. Fernando, em 22 de Outubro de 1383.
Assim se saldou a primeira tentativa hegemónica de Portugal sobre Castela, podendo parafrasear-se o Poeta, com alguma sabedoria, ao afirmar-se que o fraco rei faz fraca a forte gente.
Reinado cheio de sinuosas alterações, o de D. Fernando, monarca esbelto e sedutor, como dele diz Fernão Lopes, merece ser revisitado mais tarde, debruçando-me sobre o conjunto de medidas compensatórias dos dislates diplomáticos e bélicos deste soberano que pôs fim à primeira dinastia de Portugal.

terça-feira, julho 4

Beira, Moçambique - Um depoimento para a História

Estava eu colocado no Batalhão de Caçadores Pára-quedistas n.º 31, cuja aquartelamento era na cidade da Beira, junto das instalações da Base Aérea n.º 10, quando, corria o mês de Julho de 1973, inesperadamente, o comandante da unidade me mandou chamar. Informou-me da necessidade imediata de serem adquiridas rações de combate. Era tal a quantidade que, somando as existências no Batalhão, mesmo assim não eram suficientes, sendo preciso que a Manutenção Militar fizesse um fornecimento extra. Quando requisitei um transporte automóvel para ir à cidade - já que a Base e o Batalhão ficavam junto do aeroporto, a alguns quilómetros do centro - a resposta que obtive foi negativa; todas estavam empenhadas no serviço da companhia operacional que se encontrava em reserva na unidade. Se a primeira ordem me deixara intrigado, a explicação para a falta de viaturas gerou em mim uma enorme dúvida. Algo estranho estava a passar-se!
Não foi preciso muito para, horas depois, quando procedia à entrega das rações a um dos capitães que comandava a companhia, ficar a saber o motivo de tão inesperado afã. Recebera-se ordem para fazer seguir, com urgência, para a área do Parque Nacional da Gorongosa, distante da Beira cerca de cem quilómetros, a companhia que estava em repouso, pois haviam sido detectados grupos de guerrilheiros naquela zona. Tratavam-se das primeiras manifestações do cerco que a FRELIMO pretendia iniciar ao porto de mar e cidade da Beira. A estratégia era simples: gerar a instabilidade na área abastecedora dos materiais destinados à gigantesca barragem de Cabora Bassa, dificultando ao máximo a circulação automóvel e ferroviária entre a segunda cidade de Moçambique, Tete e a fronteira com a Rodésia. Chegara a vez do chamado «corredor da Beira» sofrer os efeitos da guerrilha.
Os pára-quedistas foram para a Gorongosa, actuando inicialmente à paisana para não causarem dano ao fluxo turístico sul-africano que demandava o Parque. Foi insustentável, por muito tempo, este disfarce; no começo do ano seguinte as tropas passaram a operar, fazendo uso dos seus uniformes de campanha.
Quando a FRELIMO abriu a frente de Tete, por volta do final do ano de 1968, dando início às acções de propaganda e guerrilha, nunca desenvolveu qualquer actividade terrorista; actuava sobre as colunas militares ou logísticas, mas jamais praticou o desenvolvimento do terror com base em ataques indiscriminados sobre populações indefesas, fossem brancas ou negras, isoladas ou em conjunto. Sabia, perfeitamente, que esse era o caminho para não ser aceite!
Nas cercanias da cidade da Beira - mais exactamente na pequena povoação do Dondo - vivia o engenheiro Jorge Jardim e família (sendo que uma das filhas mais jovens era a, hoje muito colunável, Cinha) e tinham aquartelamento os célebres GE’s (Grupos Especiais) e os GEP’s (Grupos Especiais Pára-quedistas). Quem eram e o que faziam?
Tratava-se de uma milícia negra, enquadrada por militares europeus que os treinavam, e que actuavam como tropa de reforço em operações especiais, não estando, por conseguinte, ligadas à quadrícula normal das forças do Exército. Constituíam um misto entre as companhias de caçadores especiais (preparadas em Lamego), as companhias de comandos e as companhias de pára-quedistas, com diferença de serem operacionalmente comandadas por graduados negros apoiados na experiência de militares europeus. Era uma milícia fortemente inspirada nas teses do enigmático engenheiro Jorge Jardim! Eram, de certeza, o embrião das futuras Forças Armadas moçambicanas (de um Moçambique independente, governado por Brancos e por um ou outro Negro, bem escolhido, para justificar a mestiçagem!).
Nos últimos dias de Dezembro de 1973 ou nos primeiros de Janeiro de 1974, na zona de Vila Pery (hoje Chimoio), ocorreu a morte de um casal de fazendeiros europeus. Ao que parece, foram barbaramente chacinados.
Este modo de agir não fazia parte dos cânones de actuação dos guerrilheiros; parecia algo próximo de uma vingança ou mero banditismo. Mas tal interpretação fugia por completo ao entendimento da população branca de Vila Pery e, mais ainda, dos europeus residentes na cidade da Beira. E isso explicava-se de forma singela: a guerra era um assunto distante que não os preocupava pois dela se encarregavam os militares idos de Portugal e os recrutas negros arrebanhados para um conflito do qual não percebiam claramente os contornos. A própria geografia da colónia justificava o alheamento: tudo se passava a muitas centenas de quilómetros de distância; mesmo Tete ficava a várias centenas de quilómetros da Beira. Acresce, às justificações aduzidas, a censura que sofriam os órgãos de comunicação social, proibindo referências de qualquer tipo à guerra que se desenrolava no Norte e na península ou saliente de Tete.
Colocados de chofre perante o que julgaram tratar-se de uma acção de guerrilheiros, os europeus da cidade da Beira, aparentemente sem qualquer tipo de organização prévia, iniciaram uma atitude de protesto, de começo, visando chamar a atenção das autoridades administrativas e, depois, de contestação contra o Exército. É sobre este acontecimento que posso dar o meu testemunho histórico, porque o vivi e acompanhei de perto.
O que queriam os europeus da Beira?
Fazer uma manifestação de protesto contra a «incapacidade» do Exército deter a guerrilha. Para tal, combinaram o encerramento de todos os estabelecimentos comerciais da cidade seguido de um imenso buzinão pelas principais artérias da urbe.
Acontece que a Messe de oficiais do Exército se situava na zona limite da cidade, frente ao mar, na estrada que segue para o aeroporto e para o Dondo. Era um edifício com características de hotel, tendo no piso térreo um amplo salão com uma maior janela para a estrada. Nesse salão funcionava o bar, sendo visível do exterior.
Os manifestantes, ao verificarem que os oficiais e respectivas famílias consumiam livremente bebidas e usufruíam do seu espaço de lazer, imediatamente se concentraram frente à Messe e, em alta voz, exigiam que aquele «estabelecimento» - o bar - fosse encerrado para que se houvesse igualdade com o que acontecia na cidade. Tratava-se de um pretexto, como é evidente, justificativo da manifestação contra o Exército.
Aos poucos, o edifício da Messe foi sendo cercado por europeus que impediam a entrada ou saída de quem o quisesse fazer. Obedecendo a ordens que não se sabe de onde partiam, de quando em vez, ouvia-se o slogan, gritado até à exaustão: «Vão para o mato malandros».
A polícia de segurança pública de recrutamento local - que se distinguia da de reforço metropolitano por usar farda de caqui - ao contrário de dispersar a manifestação montava-lhe segurança em círculo exterior.
Como me encontrava fora do meu batalhão quando os acontecimentos tiveram início, recebi ordem do comandante para ficar na cidade e, à paisana, ir verificar o que se passava informando-o, depois, telefonicamente. Assim, foi me possível recolher as mais variadas impressões e delas dar conhecimento superior. O «cerco» manteve-se por mais de vinte e quatro horas. Pôs-lhe cobro a companhia de Polícia Militar que para tal recebeu ordem directa do Comando Territorial do Centro (CTC).
Dias depois - talvez três ou quatro - foi publicado no jornal Notícias da Beira órgão completamente dominado pelo célebre engenheiro Jorge Jardim - um editorial que, não vindo assinado, se admitiu ser da autoria daquele personagem que tão bem manobrava na sombra e tanta aceitação tinha junto de certos círculos políticos e militares. Era aconselhada calma e pedia-se à população para saber esperar o momento oportuno, que não devia tardar.
Passados que são mais de trinta e três anos cabe a colocação de algumas perguntas e respectivas respostas, embora umas e outras não passem de meras hipóteses que, se calhar, o tempo ou a falta de vontade nunca permitirão esclarecer.
Quem assassinou os casal de fazendeiros, próximo de Vila Pery?
Quem, realmente, esteve por trás da manifestação dos europeus da cidade da Beira?
Quem beneficiava com a manifestação? E com o descrédito do Exército?
Quem preparava o quê?
Vou arriscar respostas que o testemunho vivido, julgo, me permitem.
O infeliz casal de fazendeiros, quase pela certa, não foi vítima da FRELIMO, todavia não descarto a possibilidade de a sua morte ter sido consequência de um acto de banditismo ou, mais maquiavelicamente, uma escolha fria e calculada da PIDE/DGS com vista a obter dividendos políticos que já explicarei, dando resposta à segunda pergunta.
A decisão da greve e da manifestação da população branca da Beira contra o Exército não foi expontânea. Alguém a orquestrou. Alguém que tinha na mira exclusivamente atacar o Exército, deixando incólume a Força Aérea, cuja Messe de Oficiais e Sargentos era precisamente no centro da cidade. Contra essa ninguém se manifestou! Porquê?
Não tenho a verdade escondida para a revelar agora, contudo, juntando alguns dados, talvez seja possível perceber motivos. Em primeiro lugar, a Força Aérea não era facilmente substituível por qualquer outra tropa; depois, era dos pára-quedistas que saía grande número de graduados para treinar os GE’s e os GEP’s; eram fortes as amizades da família Jardim no seio da Força Aérea - principalmente protagonizadas por jovens oficiais e algumas das filhas do engenheiro; foi o general Diogo Neto, antigo comandante da Região Aérea de Moçambique - depois de já ser Chefe do Estado-Maior da Força Aérea, logo no final de Abril ou começo de Maio de 1974, quando se deslocou à Beira, acompanhando o general Costa Gomes - quem deu ordem ao comandante do Batalhão de Caçadores Pára-quedistas 31 para mandar montar uma guarda de segurança no piso do hotel onde passou a residir a família Jardim; por fim, será imaginável que uma manifestação com a dimensão da que mobilizou todos os europeus da segunda cidade de Moçambique passasse despercebida da PIDE/DGS? E passando, que não desse origem à mobilização imediata de meios policiais para lhe pôr cobro, se não fosse do agrado daquela sinistra corporação? Tudo me leva a concluir, como mera hipótese histórica, que existia uma conjugação de interesses: de um lado, estava o engenheiro Jorge Jardim, desejando credibilizar-se como figura preponderante de uma possível e desejável independência de Moçambique - e não devemos esquecer que, na data da ocorrência destes acontecimentos já tinham havido encontros entre ele e representantes da FRELIMO com vista a descortinar uma solução ajustada que pusesse fim ao conflito armado; por outro, face à situação militar quase insustentável em que se encontrava a Guiné e ao avanço da guerrilha no corredor da Beira, convinha à PIDE/DGS encontrar o «bode expiatório» que salvaguardasse politicamente o regime... ou seja, a culpa do descalabro militar não era o resultado da execução de uma má política externa e colonial do Governo central, mas da incapacidade e incompetência do Exército (tinha-se plena consciência de que a falta de meios aéreos capazes não resultava da incompetência do pessoal daquele Ramo das Forças Armadas, mas do isolamento internacional a que o Governo conduzira Portugal; deste modo, a Força Aérea devia ser poupada ao vexame público, conduzindo-a ao papel de Ramo mais conservador!).
Da dedução hipotética anterior, saíram as respostas às pergunta que havia formulado. Passados mais de trinta e três anos sobre os acontecimentos resta aos investigadores históricos «pegarem» em algumas das «pontas» que deixei sugeridas e, na imensidão dos documentos, encontrar as respostas certas, se as houver!
O meu depoimento para a História aqui está, aguardando quem dele seja capaz de se apropriar para fazer luz sobre um dos antecedentes remotos da acção revolucionária e libertadora que foi o 25 de Abril de 1974.

quinta-feira, junho 15

Acasos da História

Na madrugada de 9 de Abril de 1918, na zona de Lille, o Alto Comando alemão deu início a uma ofensiva de grande envergadura sobre o cansado Corpo de Exército Português (CEP), nessa altura já só na frente com uma Divisão — a 2.ª — bastante desfalcada de efectivos e com o moral muito destroçado.
Contam-se pelos dedos das mãos o que se tem escrito de original sobre a célebre batalha do Lys — assim passou à História a designação da ofensiva germânica — de tal forma que as gerações mais novas e menos informadas julgam, no dia 9 de Abril de cada ano, estar a festejar-se uma vitória dos Portugueses na Grande Guerra ou, também chamada, 1.ª Guerra Mundial. Redondo erro. Festeja-se o tremendo sacrifício dos nossos soldados para servirem uma política de intervenção nos magnos problemas europeus do início do século XX. Olhando de uma forma mais rebuscada e erudita essa batalha, embora seja uma derrota militar, pode ser interpretada como a vitória por se terem alcançado os objectivos pelos quais Portugal entrou no conflito. Mas contar essa trama da diplomacia e dos políticos de 1916 era percorrer um complicado caminho que não cabe na dimensão deste apontamento. Seja como for, para não deixar em suspenso os meus leitores, dir-lhes-ei apenas que o ataque alemão foi de tal monta que, depois de ter levado de vencida as pobres tropas portuguesas, engoliu Divisão atrás de Divisão do exército britânico até ao dia 25, data na qual se susteve a arremetida, depois de terem o hunos conquistado uns quantos quilómetros de frente aos Aliados.
As maiores baixas nacionais não se traduziram em mortos, mas em prisioneiros; qualquer coisa como 6.585 homens. A explicação para tal número é simples: esperando ser atacados pela frente, os Portugueses foram colhidos pelos Alemães num ataque pela retaguarda, pois os flancos, defendidos pelos Ingleses cederam e deram passagem aos germânicos. Toda a resistência era inútil, por já estarem desfeitas as defesas. O prisioneiro com mais elevada graduação militar foi o tenente-coronel Craveiro Lopes, pai daquele que viria a ser, muitos anos mais tarde, presidente da República.
Separados os oficiais dos sargentos e praças lá seguiram os dois grupos para campos de concentração diferentes onde pouco diferia o tratamento. Em abono da verdade, devo dizer que são reportados poucos casos de brutalidade física, contudo, o mais significativo foi o muito frio que passaram — tiveram de viver com a roupa que tinham no corpo — e a muita fome.
Ora — e vem agora o acaso que dá o nome ao apontamento — os prisioneiros, depois de separados, não se dirigiram todos para os mesmos campos, na Alemanha; houve quem fosse parar ao Norte do país e quem ficasse logo ali pelas proximidades da Bélgica. Calhou que um pobre praça, jovem de vinte anos, malhasse com o corpo em um campo de concentração situado em Münster, onde havia, pelo menos mais dois campos. Por lá ficou a tiritar de frio e catando baguinhos de arroz, cascas de batatas e umas ervitas que metidas em água a ferver sempre ganhavam uma vaga semelhança com sopa. Quando a fome apertava, segundo me contou um dos seus netos, por o ter ouvido contar ao avô, se conseguiam apanhar um rato do campo cozinhavam-no também, depois de esfolado e esventrado. Ao que parece, a carne deste tipo de roedores é rica em vitamina C.
O nosso soldado, após o armistício, foi repatriado, regressou à terra — no Norte de Portugal —, casou e teve filhos. Um deles, muitos anos depois, pelo final da década de 50 da centúria passada, emigrou para a Alemanha e, não é que o acaso o levou para Münster?! Ali amealhou o suficiente para poder, mais tarde voltar à sua terra e ali lhe nasceu o filho que me relatou o cativeiro do avô.
A roda da Vida tem coisas estranhas... No mesmo local onde um homem sofreu fome os seus descendentes vão encontrar a fortuna e o bem-estar. Será por Portugal, há quinhentos anos, ter sido um reino rico, famoso e cheio de poder que nós hoje estamos na cauda da Europa?

sexta-feira, junho 9

Sair das trevas

Sair das trevas
Portugal enquanto Estado, enquanto unidade política autónoma foi fruto da vontade de uma elite poderosa, senhora das terras entre Douro e Minho e cobiçosa dos vastos territórios entre Douro e Mondego.
Do reinado de D. Afonso Henriques, o primeiro dos monarcas portugueses, a D. Afonso III, seu bisneto, foi alargado o território até se atingir, a Sul, novamente o Atlântico. O rectângulo estava delineado; o mar limitava-o por dois lados e alguns rios por outros dois. Era difícil impor a Leão e Castela a perda de terras que já lhe pertenciam ou a que se julgavam com direitos naturais.
O terceiro dos Afonsos deixou o Algarve como fronteira austral. O reino estava dimensionado, unido, sem desavenças de maior, nem linhas fracturantes. Ao lado, estendia-se Castela governada pela mão cautelosa, prudente e conhecedora de Afonso X, aquele a quem a História denominou por Sábio. Era sogro de Afonso III e, por conseguinte, avô do varão herdeiro do trono de Portugal.
Em 1278, já velho e cansado da governação, Afonso III entrega a D. Dinis as rédeas do poder. Era o primogénito e a tal tinha direito, contudo, uma estranha situação esteve na origem do conflito interno que opôs o novel monarca ao seu irmão mais novo, também, Afonso. Vou passar a contar, em linhas tão largas quanto me for possível.
O pai de D. Dinis, irmão do rei D. Sancho II, havia casado, em França, com a condessa de Bolonha. Entretanto, D. Sancho II - rei dado à guerra e pouco à governação, pelo menos no sentido que o alto clero português dele esperava - completava a obra de conquista deixada em aberto por D. Afonso Henriques.
As queixas dos bispos, afrontados pelos representantes do soberano, chegavam a Roma e criavam junto da Santa Sé uma imagem de reino ingovernado. A intriga internacional, tecida entre Paris, Roma e Portugal, levou a que fosse olhado o infante D. Afonso de Bolonha como uma solução face à deposição ou afastamento de D. Sancho II. Foi isso que aconteceu. Mas o rei português contava com a aliança do rei de Castela.
A guerra civil acabou por ocorrer e só não teve maiores repercussões, porque o futuro Afonso X recuou perante a indicação que Afonso de Bolonha estava apoiado pelo papa. D. Sancho II, em 1248, morreu exilado na cidade de Toledo.
Afonso de Bolonha tinha agora todas as passagens abertas para chegar ao trono do seu falecido irmão. Em 1249, mandou conquistar o Algarve, também disputado por Castela. Esse foi o motivo da guerra entre os dois reinos iniciada logo no ano seguinte. Em 1253 o papa consegue que seja assinada a paz, obrigando-se D. Afonso, agora III, a casar com uma filha de Afonso X de Castela. Era ainda viva a condessa de Bolonha que ficara em França. Do matrimónio com a castelhana nasce D. Dinis e depois D. Afonso. Contudo, este viu a luz do dia já depois da morte da condessa de Bolonha. Assim, para efeitos morais e legais, o primogénito é D. Afonso e não D. Dinis, porque este era filho do pecado por o pai ser, à data do seu nascimento, um bígamo.
Tal é a justificação para, em 1281, se iniciar uma guerra civil entre os dois irmãos. Como se sabe saiu vencedor o rei D. Dinis. No entanto, é preciso ter presente que a explicação anterior é curta e não dá para tapar toda a verdade. Com efeito, a revolta de D. Afonso contra o primogénito escondia o facto de o infante estar a ser utilizado pelos grandes senhores do reino para imporem a sua vontade ao novo soberano, fazendo dele um mero joguete para satisfação das suas desmedidas ambições. A vitória de D. Dinis e a subordinação de D. Afonso tornaram-se determinantes na contenção dos desejos da grande nobreza do reino.
Foi no ano em que a paz interna se restabeleceu que D. Dinis casou com D. Isabel de Aragão. Não se tratou, por certo, de um matrimónio desinteressado. Realmente, até o reino de Aragão ser absorvido por Castela, ele foi o aliado privilegiado de Portugal, porque, desta maneira, se conseguia, estrategicamente, empalmar o reino vizinho entre duas potências peninsulares.
Julgo que posso afirmar ter sido D. Dinis o primeiro príncipe herdeiro da coroa portuguesa, na primeira dinastia, a receber uma educação verdadeiramente voltada para a função que iria ocupar. Em minha opinião, isso dever-se-á ao cosmopolitismo de D. Afonso III, adquirido nos anos que viveu na corte francesa. A saída da Península e a passagem dos Pirenéus abriu-lhe horizontes que os seus familiares desconheciam. O facto de ter organizado uma estadia de D. Dinis, ainda infante, na corte do seu avô, Afonso X, faz-me crer que, na impossibilidade de lhe oferecer um panorama cultural de horizontes mais amplos, deu-lhe o convívio com o rei Sábio, esperando assim compensá-lo da estreiteza de vistas de um Portugal afastado dos centros da coeva modernidade europeia. E não foi em vão que assim acautelou o futuro do seu herdeiro.
D. Dinis, que reinou quarenta e seis anos, foi um poeta exímio para o seu tempo, escrevendo tanto cantigas de amigo como cantigas de amor e de escárnio ou maldizer. Tais dotes ficaram atestados para a posterioridade em vários manuscritos medievais.
Nem só a compor obra poética viveu este soberano; a ele se deve a plantação do pinhal de Leiria - que, mais de um século e meio depois, se tornou a grande fonte de madeiras para a construção naval - preocupado em travar a progressão das dunas e dos pântanos que caracterizavam a paisagem original da zona.
Os cuidados com a agricultura valeram-lhe o cognome de o Lavrador¸ poderia ter sido o Poeta ou, até, o Educador, pois foi em 1290, na vigência do seu reinado, que oficialmente a Santa Sé reconheceu a fundação da Universidade de Lisboa, então designada por Estudo Geral. D. Dinis deu provimento ao pedido dos clérigos e fê-lo avançar para Roma porque boas eram as justificações apresentadas: quem, em Portugal, quisesse ilustrar-se não tinha como pois só aos estudos monásticos e às escolas claustrais poderia recorrer, ficando-se pelo mais elementar que na época existia; a alternativa era procurar no estrangeiro estabelecimento onde pudesse saciar a vontade de saber. Alguns estudantes demandavam Salamanca, mas tal não estava ao alcance de todos. Por outro lado, quem saía, com mais dificuldade regressava ao reino por ter ganho a ilustração que entre nós não tinha o apreço e recompensa devidos - assim aconteceu com Pedro Hispano ou Pedro Julião, único papa português que adoptou o nome de João XXI, o qual deixou fama e obra muitos anos recordadas além Pirenéus. E, acima de tudo, o clero - razão fundamental para a fundação da Universidade - não tinha erudição suficiente para contribuir para o desenvolvimento cultural dos povos embrutecidos no labor da terra ou dispersos nas distracções da corte.
Se os pontos por mim realçados - em desfavor de tantos que seria ocioso mencionar - não fossem suficientes para dar a D. Dinis um lugar de destaque na História da Monarquia portuguesa um outro há que o torna no fundador oficial da língua por hoje falada. Na verdade, ao seu régio mando se deve a obrigação de todos os registos terem deixado de ser feitos no latim mais que adulterado, em uso pelos tabeliães, para se utilizar a língua vulgar, ou seja, o galaico-português, já em fase de afastamento do utilizado a Norte do rio Minho.
E cabe aqui, para satisfação de todos - e, nos tempos que correm, são muitos - quantos querem descobrir para Portugal uma vocação esotérica, deixar recordado que foi D. Dinis o rei que conseguiu da Santa Sé autorização para converter em Ordem de Cristo os bens e os freires da Ordem do Templo. Se eles eram detentores de um saber ecuménico, de um entendimento da vida espiritual diferente da disciplina eclesiástica estabelecida, puderam preservar tais valores e - quem sabe? - por isso terão sido os impulsionadores da grande epopeia dos Portugueses: os Descobrimentos.
Teremos de salvaguardar os quase sete séculos de distância, a época, as mentalidades, mas não devemos deixar de nos interrogar como foi possível, em quarenta e seis anos - dois menos que o tempo de duração da ditadura militar e salazarista - tanto fazer pelo progresso e modernização de Portugal quando, em quarenta e oito - de 1926 a 1974 - tanto se retrocedeu nos mesmos domínios. Estranho, como se pode sair das trevas ou permanecer nelas com a mesma passividade de quem assiste indiferente ao correr dos das horas, dos dias e dos anos!

terça-feira, maio 30

O meu exercício da docência

Era cadete finalista da Academia Militar, no já distante ano lectivo de 1964/65, quando comecei a dar explicações de Matemática e aulas de História e Geografia em «Salas de Estudo» - como então se chamavam a centros onde se completava o conhecimento da frequência dos liceus. Desde então para cá, foram raros os anos lectivos em que não desenvolvi actividade docente.
No começo da década de 70 estreei-me a dar aulas em colégios particulares e, dez anos mais tarde, passei a leccionar no ensino superior militar, primeiro no Instituto de Altos Estudos da Força Aérea (IAEFA) e, depois, na Academia da Força Aérea. No início da década de 90 (1992) fiz a minha estreia como professor do ensino universitário civil. Há catorze anos que por lá me mantenho, fiel à Universidade Autónoma de Lisboa (UAL).
Ao olhar para trás, sinto-me satisfeito pelo trabalho desenvolvido. Acredito que a docência é uma missão e não uma profissão. Sempre achei que mais importante do que levar um aluno a saber uma qualquer matéria é conseguir despertar-lhe dois sentimentos simultâneos: o gosto pelo conhecimento e o prazer de saber. Bom professor é aquele que faz do seu aluno um verdadeiro estudante, um Homem voltado para o exterior, capaz de estar preparado para o acto simples de aprender.
Certamente não consegui que todos os meus alunos assumissem esta postura - talvez por culpa minha - contudo, sinto-me satisfeito comigo, porque algumas das muitas sementes lançadas à terra fortificaram e medraram.
Ao longo de tantas décadas, já ensinei milhares de alunos. De muitos ficou-me a lembrança individual em consequência de, por qualquer motivo, me recordar da pessoa. As razões podem ter sido boas ou muito más! Contudo, de cursos, ou seja de todo um conjunto de alunos, recordo muito poucos: um, do já extinto Externato de Santa Bárbara, outro do primeiro ano que leccionei na Academia da Força Aérea (1985/86) e outro bem recente, na UAL. Reporto-me aos alunos entrados em 2002 para o 1.º ano da licenciatura em Relações Internacionais. Dei-lhes aulas logo mal chegaram à Universidade e, depois, no 3.º ano. Quase todos estão agora a concluir a sua formação. A eles vou dedicar o apontamento de hoje.
É sempre tormentoso dar aulas aos alunos do primeiro ano da Universidade, porque, como regra, apresentam-se ainda com os hábitos e comportamentos próprios do ensino secundário: a irrequietude, as interrupções para dizer coisas a despropósito, as perguntas não pensadas, a incapacidade de aguentar 90 minutos de aula sem se dispersarem, enfim, toda a panóplia de atitudes contrárias à forma de alguém se comportar numa Universidade. Os novos comportamentos têm de lhes ser ensinados através de uma conduta que não deixe dúvidas aos caloiros. Melhor ou pior lá vão aprendendo a comportar-se de modo que, ao chegarem ao 3.º ano, são pessoas diferentes.
Em Outubro de 2002 ingressou na UAL, destinado ao curso de Relações Internacionais, um grupo de alunos bastante heterogéneo: elevado número de Africanos, alguns Brasileiros e bastantes Portugueses caucasianos. Os Africanos vinham, maioritariamente de Angola, embora os houvesse de S. Tomé, de Cabo Verde e da Guiné-Bissau.
Irrequietos e irreverentes, com todas as características inerentes a tantos outros caloiros que já me passaram pelas mãos, havia no grupo algo de diferente: uma irreverência não desrespeitosa acompanhada de uma imensa vontade de serem capazes de gerar uma coesão verdadeira; independentemente das suas diferentes origens queriam ser amigos, queriam esbater o que os separava para manter junto o que os juntava.
Depois de os deixar no primeiro ano, soube que, no segundo, tinha havido desistências. O grupo reduziu-se, mas ficou mais coeso. Começaram a destacar-se três líderes que, ao contrário de disputarem a chefia, complementavam-se: um São-tomense, um Português e um Brasileiro. Eram os mais disponíveis para todos os restantes. Souberam desenvolver um sentimento de anti-concorrência; a cooperação passou a ser a sua palavra de ordem; o grupo era mais importante do que as partes que o constituíam. Assim os «apanhei» no 3.º ano.
Naturalmente, houve alunos fracos e alunos bons, mas todos se mostraram desejosos de ultrapassar as dificuldades que, propositadamente, lhes criava para se superarem. A simpatia fluiu, tornando as lições mais agradáveis.
Julgo ter sido capaz de deixar amizades entre aqueles alunos, agora já finalistas. Parece-me que os marquei.
Pela primeira vez, em tantos anos de ensino, sinto que cumpri integralmente a minha missão.
É com um misto de tristeza e alegria que os vejo partir. Vão para as suas terras, para os seus destinos; seguem rumo ao Futuro, mas ficarão na minha lembrança e no meu coração, todos em conjunto e cada um em particular e por razões diferentes.
Será, de certeza, com muita alegria que receberei notícias deste grupo e peço Àquele que rege o Universo a possibilidade de terem os caminhos da Vida aplanados e fáceis de modo a vencerem sem perderem de vista que a melhor vitória não é a individual, mas a do grupo.

terça-feira, maio 9

O primeiro rei de Portugal

Há uma pergunta que me assalta quando medito sobre a origem histórica e, consequentemente, política do nosso país:
— Nos recuados anos de 1140 (mais coisa, menos coisa) será que os camponeses do Alto Minho tinham consciência de serem portugueses (ou portucalenses) e desejo de serem independentes do reino de Leão?
Imagino que o meu leitor já esboçou um sorriso e pensa com os seus botões: — Este está louco ou para lá caminha! Então querem lá ver um pobre camponês do século XII preocupado com ser isto ou aquilo! Ele queria era não morrer de fome e ter no final das colheitas o suficiente para pagar ao seu senhor os impostos que lhe lançava em cima dos ombros!
Se o leitor pensou assim, pensou muito bem, porque concordo consigo.
Realmente a minha pergunta é mais retórica do que outra coisa qualquer. Mas tem o seu fundamento.
Abra o leitor um compêndio de História de Portugal e verá que todos, ou quase, os historiadores se referem a D. Afonso Henriques como o «fundador da nacionalidade». Ora, no mais estreito rigor histórico, o nosso primeiro rei o que fundou foi um Estado, porque o conceito de Nação obriga a que os habitantes, o Povo, a população, o grupo social — chamem-lhe o que lhes der na gana — tenham consciência de pertencer a um mesmo agregado humano, enaltecer a sua história, desejar viver o presente em conjunto com os restantes elementos e, também, querer continuar no futuro a herança de vida em comum. Como nada disto ia, pela certa, na cabeça dos camponeses do Norte do território, também, pela certa, é um tremendo erro dizer que D. Afonso Henriques fundou a nacionalidade! O primeiro rei português foi, isso sim, um testa de ferro dos interesses dos grandes barões de entre Douro e Minho.
Anda por aí a circular uma quase tese segundo a qual D. Afonso Henriques não seria, efectivamente, o filho do conde D. Henrique e de D. Teresa. O pai morreu poucos anos após o nascimento do filho e este foi entregue (não se sabe quando) a Egas Moniz — um dos grandes barões do condado — para na qualidade de aio, o educar; a criança teria morrido e o nobre, de combinação com os outros grandes senhores da terra, substituiu-o por um seu filho da mesma idade. Claro que tudo isto não passa de uma hipótese, mais ou menos desconchavada, lançada para o ar e sem fundamento documental. Desta maneira justificar-se-ia o cruel tratamento do suposto D. Afonso para com a D. Teresa (raciocínio demasiado romântico e «bonzinho» para ser verdadeiro naquela altura da Idade Média! Esquecemos que, então, a rudeza de sentimentos caracterizava as relações sociais).
Seja como for, D. Afonso Henriques foi o primeiro rei de Portugal. A ele se deve a reconquista definitiva de todo o território do Estado até ao rio Tejo. Embora tenha andado pelas terras do Sul, foi, no fim da vida, obrigado pelos sarracenos a recolher as suas hostes para trás das águas do rio que divide esta área da Península.
Corro o risco de cometer aquilo que em História se chama um anacronismo, se disser que D. Afonso Henriques desenvolveu uma estratégia muito inteligente para conseguir fazer reconhecer o condado como um reino independente e não vassalo de Leão. O risco vem do facto de, no século XII, não ser conhecido o conceito de estratégia; não se falava de tal, mas já se praticava... Aliás, sempre se praticou, porque a estratégia está intimamente ligada ao conflito e, desde que dois homens coabitem o mesmo espaço, existe conflito, dando origem à definição instintiva de estratégias. Se aceitarmos a sua existência, embora não revelada como tal, estamos em condições de perceber como o primeiro rei de Portugal se movimentou para alcançar o objectivo que tinha em mente ou lhe era sugerido pelos seus mais próximos conselheiros. Vamos, então, esclarecer a questão.
D. Afonso tinha de desenvolver um conflito em três frentes adversas: os Mouros, a Sul do território, os Galegos/Leoneses, a Norte e Este e, por fim, a Santa Sé, autoridade indiscutível a quem o reconhecimento do poder temporal, naquelas épocas, se ficava a dever. O alcance do seu objectivo dependia da boa ou má articulação que fosse capaz de fazer destes factores.
Era necessário enfrentar militarmente Leão e os Mouros, mas havia que saber tirar proveito de ambas as acções. D. Afonso, depois de internamente dominar os adeptos da causa de D. Teresa — que a viam como sucessora do conde D. Henrique — optou por atacar, como se impunha, o primo, Afonso VII, de Leão, tomando a Galiza como eixo do movimento castrense. Nisto se gastou tempo até se chegar à paz de Tui, em Julho de 1137. Este acordo resultou da imperiosa necessidade de desviar forças para o Sul do território, entretanto atacado pelos Sarracenos.
Em 1140, D. Afonso Henriques sai vitorioso, na batalha de Ourique, contra os muçulmanos. Intitula-se, logo de seguida, rei de Portugal e de novo ataca a Galiza. As forças dos dois primos defrontam-se em Valdevez. Outra vez o auto aclamado rei de Portugal aceita fazer a paz com Afonso VII, agora em Zamora, corria o ano de 1143. À conferência esteve presente o cardeal Guido de Vico, representante do papa. O rei de Castela e Leão reconhece Afonso Henriques como rei de Portugal e este presta vassalagem ao papa, prometendo-lhe o pagamento de quatro onças de ouro em cada ano.
Porquê foi tão fácil o entendimento? Razão simples; Afonso VII queria ver-se reconhecido pela Santa Sé com o título de imperador da Hispânia, convindo-lhe deste modo a vassalagem de um rei, já que concedeu ao primo o título de senhor Astorga, alçando-se assim a seu suserano.
Pareciam conseguidos os intentos de D. Afonso I de Portugal, mas faltava o mais importante: o reconhecimento da Santa Sé. Para tanto, de novo, o monarca português usou de inteligência, tirando proveito da oportunidade que lhe surgia: atacou os Mouros, no Sul do território. Assim, lutando contra o infiel, alargava o território da cristandade enquanto engrandecia o seu reino. A tal não podia ficar indiferente o papa.
As conquistas começaram em 1147, por Santarém, e, continuando, caíram Lisboa, Sintra, Almada e Palmela. Em 1158 ou 1160 foi conquistada Alcácer do Sal. Já seguro do avanço, D. Afonso Henriques conquistou, em 1159, Tui, na Galiza. Depois, o território de Límia e, em 1163, Salamanca. É, então, que dois anos mais tarde, pelo Tratado de Pontevedra, o rei de Portugal e de Leão, acertam a paz e as devoluções respectivas. De novo, o monarca português se vira para Sul e já conquistada Évora, em 1179 o papa, pela bula Manifestis Probatum, reconhece D. Afonso I rei de Portugal. No ano anterior, o infante D. Sancho havia feito uma entrada em território sarraceno, chegando até aos arredores de Sevilha. Estavam alcançados os objectivos do primeiro rei de Portugal.
Fiel à estratégia definida, venceu resistências e dificuldades.
Tendo começado por uma pergunta retórica, deixem os meus leitores que finalize com mais duas:
— Como interpretarão os políticos nacionais, hoje, agora, as capacidades do fundador do Estado português? Seriam eles hábeis suficientes para traçar uma estratégia definidora de uma nova fundação?
Permitam-me que duvide...

domingo, abril 30

Os Portugueses que nós somos

Haverá, realmente, uma cultura portuguesa?
Esta tem sido uma das perguntas que, de há vários anos a esta parte, se vem colocando aos intelectuais do nosso país. Hoje, mais do que nunca, num mundo no qual se procura uniformizar comportamentos tem grande fundamento a interrogação que expressei. E tem, porque toda a gente vai para as estâncias de férias da moda, veste-se segundo os padrões definidos pelos costureiros internacionais, usa o carro que é mais badalado, utiliza, até à exaustão, o idioma inglês, admira e copia, nos comportamentos, as individualidades mais na berra, enfim, numa só expressão, deixa-se condicionar pela máquina publicitária.
Sem procurar ser demasiado optimista, julgo que ainda são possíveis descobrir, aqui e além, traços da manifestação cultural, verdadeira e autónoma, dos Portugueses.
Claro que, quando me refiro à «cultura portuguesa», falo daquilo que os antropólogos definem como sendo tudo o que o Homem acrescenta à Natureza. É, afinal, o resultado da luta que vamos travando no local onde vivemos, trabalhamos e acabamos por morrer, contra todo o tipo de adversidades, ou como tal sentidas, que nos chegam de fora. Isso é «cultura». Cultura erudita é outra coisa; são as manifestações mais ou menos artísticas produzidas para deleite intelectual de quem as faz e gozo ou usufruto de quem as adquire ou simplesmente aprecia!
Aclarados conceitos, parece-me, posso concluir que, no fim das contas, a cultura é sempre o resultado de sucessivas misturas que se caldeiam ao longo dos anos, dos séculos e dos milénios, sendo nosso o que também já foi dos outros e adaptámos.
Do mesmo modo que o comum dos Portugueses quando se olha ao espelho poderia, com uns pequenos retoques, ser confundido com um Magrebino ou um Turco, também na nossa cultura (no sentido vulgar e no erudito) existem lampejos desses muçulmanos que durante mais de quinhentos anos estiveram na Península Ibérica e à qual chamavam sua. E cinco centúrias são qualquer coisa como o tempo que vem desde a chegada de Pedro Álvares Cabral ao Brasil à actualidade!
Brincam os nortenhos, chamando à gente do Sul de Portugal mouros. Eles também não podem eximir-se a essa herança! A diferença está em menos uma ou duas centenas de anos ou qualquer coisa que o valha. O baluarte galego-duriense terá consolidado a sua posição cristã entre o século IX e X, havendo antes estado sujeito à forte influência islâmica desde o século VIII.
Foi por ser centro de fixação de povos cristãos, vindos da Europa mais cedo, que o Norte de Portugal, precocemente, se «misturou» e descaracterizou da matriz mourisca. Mas como o Sul é, geograficamente, maior que o Norte, foi aqui que o Poder político – desde os tempos mais recuados – preferiu viver, dando uma clara prevalência aos valores de aquém-Mondego sobre os da região que lhe fica por cima. O modo de falar a Língua Portuguesa é disso o testemunho mais notável.
Somos iguais, mas diferentes. Uma diversidade, felizmente, ainda visível. É, talvez, nessas distinções que poderemos encontrar o substracto da cultura portuguesa, aquilo que nos distingue como um todo dos restantes povos europeus e do mundo.
Estranha e paradoxalmente, os elementos que nos uniformizam internamente – os meios de comunicação de massas com especial relevo para a televisão – são os mesmos que nos podem destruir a personalidade no conjunto dos povos, porque, levada longe demais a acção uniformizadora tenderá a ultrapassar fronteiras e, qual maremoto, arrasar tudo por onde passa. Levará muitos anos, mas é para aí que a humanidade se encaminha.
O mais recente atentado à individualização dos povos e à da sua cultura arribou de uma maneira erudita, de uma forma aplaudida por muita gente: o acordo de Bolonha!
Sim, o acordo de Bolonha. Aquele que vai reduzir a duração dos cursos de licenciatura de quatro para três anos e possibilitar a circulação dos alunos entre universidades europeias. Em nome de um espaço político e económico, destruir-se-á um espaço de diversidade cultural. São as «catedrais do saber» e os seus «sacerdotes» quem alegremente embalam a massificação.
Defendamos o que ainda pode ser defendido.

sábado, abril 22

Alguns problemas económicos

Hoje serei diversificado. Apontamentos curtos, mas incisivos.
Em 1973, quando houve a primeira grande subida de preço do petróleo, estava eu em Moçambique, mais concretamente colocado no Batalhão de Caçadores Pára-quedistas n.º 31 (BCP-31). Para mim, enquanto cidadão, foi só ligeiramente preocupante, pois, na altura, tinha um (saudoso) Fiat 600, consumindo gasolina normal e, acima de tudo, muitíssimo pouca. Contudo, para os vizinhos da, então, Rodésia, de Ian Smith, a questão assumiu proporções gravíssimas, visto dependerem do oleoduto da Beira por onde lhes chegava o abastecimento e a Armada britânica não haver reduzido, de forma notável, o bloqueio ao abastecimento. A atitude dos brancos e dos negros da Rodésia foi, aceitando o aconselhamento governamental, tudo fazerem para reduzir o consumo petrolífero. Nas rádios e na televisão ouvia-se, furiosamente repetido, o slogan «Don’t try Rhodesia dry». Havia consciência cívica da dependência do petróleo e de como evitar gastá-lo desnecessariamente.
Vem isto a propósito da notícia saída no Le Figaro de hoje, dia 22 de Abril. Com efeito, em França, 50% dos condutores reduziram a utilização das suas viaturas por causa do aumento de preço dos combustíveis. E por lá, os salários são bem mais elevados do que em Portugal! Aqui, basta olhar para a circulação automóvel na cidade de Lisboa e para as saídas em regime de mini-férias na semana da Páscoa, agora nesta do feriado de Abril e, muito provavelmente, para o que vai acontecer no primeiro dia de Maio.
Vivemos como se estivéssemos no mais rico país da Europa.
Qualquer coisa vai mal entre nós. A economia paralela está de muito boa saúde e os hábitos consumistas, adquiridos nos tempos do Governo Cavaco Silva, implantaram-se em absoluto. Curiosamente, o exemplo, mau, vem de onde não devia vir: dos deputados que fazem «ponte» e gazeta ao plenário da Assembleia da República, dos responsáveis municipais que mantém as iluminações nocturnas de todos os monumentos públicos, tal como se nadássemos em energia eléctrica barata e do próprio Governo que autoriza o funcionamento das televisões até altas horas da madrugada.
Nunca ninguém me ouviu ou ouvirá fazer a apologia do Estado Novo e dos seus governantes, contudo, nesse tempo o Poder político era coerente: em situação de crise não havia iluminações públicas no Natal, dos monumentos e a televisão encerrava os seus trabalhos antes da meia-noite.
Democracia não pode ser sinónimo de regabofe, de falta de fiscalização fiscal, de inconsciência e de ausência de civismo. Não se podem exigir sacrifícios a uns quantos e permitir o desbarato a outros.
Quando é que o Governo acorda para a verdadeira justiça social e para a equidade?

Segundo o jornal Le Monde, de 11 de Abril, em Washington, admite-se a hipótese de empregar armas nucleares tácticas no Irão, no caso de se desencadearem operações militares contra aquele país.
Pergunto-me: - para além de, com as acções militares no mundo, o Governo dos Estados Unidos procurar manter o nível de bem-estar económico da sua população, que futuro desejam os Americanos para o Médio Oriente? O caos? A desordem a todo e qualquer preço? A ruína da economia europeia? De certeza que o fim do terrorismo não o buscam, porque ele aumentou exponencialmente depois do ataque ao Iraque.
Atacar o Irão é desencadear, sem controlo, o ímpeto dos islâmicos mais radicais e - quem sabe? – o dos moderados, até porque toda a compreensão tem limites.
Vamos ver onde desemboca este desenrolar de acções e provocações mútuas.

Ontem, dia 21 de Abril, o mesmo jornal francês – Le Monde – fazia eco de notícias vindas de Espanha. Daquela Espanha que nós Portugueses tanto admiramos por ter conseguido um salto no desenvolvimento económico. E o que se dizia?
Pois bem, os economistas espanhóis estão a ficar preocupados porque o boom ou «milagre» económico do seu país, segundo eles, se deve ao crescimento da construção civil e à venda de habitações a preços concorrenciais. Todavia, com o aumento das taxas de juro no mercado financeiro europeu, a compra de casas vai ser fortemente afectada, levando a que a procura decresça e haja uma recessão interna com as consequências respectivas sobre toda a economia espanhola.
Os benefícios da liberalização têm um preço altíssimo: as crises cíclicas. Na busca de novas «aventuras» económicas os interessados na ampliação dos seus rendimentos esquecessem de estudar a História, a História do século XIX e do começo do século XX. Foi a ânsia de levar mais longe os lucros empresariais que se tornou responsável, em última análise, pelas duas guerras do século passado. Que os conselheiros dos decisores políticos das grandes potências tenham presente isso mesmo, é a nossa única esperança.

domingo, abril 16

Ganharam... Até quando?

Os Franceses ganharam a batalha contra uma lei que deixava já mostrar as garras do neo-capitalismo afirmado e firmado internacionalmente. Foi uma luta dura, um braço de ferro feroz.
Ganharam... E agora? Será que o capitalismo, na sua máscara mais hedionda, vai desarmar? Julgo que não. Os Franceses conseguiram, simplesmente, adiar uma situação. Adiar não é resolver.
Ao analisar as ideologias políticas no mundo de hoje percebemos quanta falta faz aos trabalhadores a existência do bloco comunista. Não que eu partilhe do ideal marxista, mas como politólogo não posso deixar de compreender o desequilíbrio gerado com a falta de bipolarização que, durante cerca de cinquenta anos, gerou a possibilidade de se desenvolver uma esquerda interventora e plural que lutava contra as arremetidas do capitalismo peado pelo receio de ter de enfrentar militarmente o bloco de Leste.
Foi à sombra da existência desse equilíbrio que o chamado Terceiro Mundo se conteve numa espécie de neutralidade bipolar. O facto das grandes potências da época não se enfrentarem, mas, pelo contrário, usarem terceiros para medir possibilidades deu às forças da esquerda democrática não enfeudada a Moscovo a hipótese de desenvolver uma forma de reivindicação que veio a desembocar naquilo que se chamou social-democracia, ou seja, o Estado assumir-se como entidade protectora da sociedade e dos mais carenciados. E de tal forma esta ideologia socio-económica se implantou que, mesmo quando eram Governos de direita a assenhorear-se do Poder, ela subsistiu e manteve-se dentro de padrões considerados aceitáveis como modo de protecção social.
O desaparecimento do bloco comunista levou, por um lado, à desagregação ideológica do Terceiro Mundo, ficando a dar peso a alguns Estados até então com ele identificados o facto de serem grandes produtores de petróleo, e, por outro, enfraqueceu toda a capacidade reivindicativa da esquerda democrática. Esta, lentamente, foi tendo de pactuar com o avanço descarado do capitalismo globalizado e globalista. As mudanças de carácter económico que se operaram no mundo, em menos de quinze anos, consolidadas no poder do capital globalizador, não encontraram ainda uma esquerda capaz de fazer recuar esse mesmo capital imperial. Curiosamente, parece ter havido uma deslocação da luta política para um outro tipo de confronto que nos surge mais tido como religioso: o afrontamento entre os Estados ditos de matriz judaico-cristã e os de origem islâmica. O equivalente aos movimentos terroristas e radicais de esquerda que caracterizaram as décadas de 60 e 70 do século XX espelham-se hoje no fundamentalismo islâmico através da prática de um outro tipo de terrorismo, mais suicida do que aqueles outros. A par das reivindicações laborais, fruto do aumento incontrolado do desemprego, dos baixos salários praticados e da instabilidade laboral, as sociedades euro-asiáticas tendem para o confronto entre etnias, começando a esboçar-se problemas do âmbito xenófobo.
Parece que o empenhamento do capitalismo global só pode ser detido por um de dois processos: ou pela ruptura e confronto étnico-religioso ou pela reafirmação de uma ideologia de esquerda suficientemente credível que abarque em simultâneo as duas fontes de instabilidade (política e social). Curiosamente, tem sido a França o «laboratório» onde se têm ensaiado os diferentes tipos de conflitos.
Para quando uma nova doutrina política capaz de arregimentar as forças de oposição ao capital?

quarta-feira, abril 5

Eles comem tudo...

Foi em Maio, há trinta e oito anos. A Europa e, talvez uma grande parte do mundo, acompanhou com apreensão os acontecimentos em França. A juventude universitária, à qual se juntou a voz dos operários, reclamava, exigindo reformas profundas. Ficou célebre o slogan «Imaginação ao Poder». Depois da recuperação da 2.ª Guerra Mundial e da ocupação nazi, do desastre militar na Indochina, da guerra e retirada, a descontento de muitos, da Argélia e, depois, acima de tudo, do boom económico dos anos 50 do século XX, os Franceses — os jovens Franceses — queriam novas perspectivas de vida, emprego assegurado após a conclusão dos estudos. E tudo isto porque a França estava a atravessar um período que parecia favorável à implantação prática das ideias de uma esquerda política liberal e liberalizante.
Decorridos trinta e oito anos, caído o muro que envergonhava os Europeus, desfeito o sonho de um Estado socialista, afirmada a superioridade de uns Estados Unidos pacóvios apoiados e «nobilitados» por um entendimento com a Grã-Bretanha quase subserviente, vivendo um modelo novo de capitalismo velho, os jovens Franceses gritam ao mundo e aos seus governantes que não aceitam as regras de uma concorrência cega e, acima de tudo, injusta. A França revolucionária está a dar os primeiros passos para contraditar a viragem acelerada que o capital acéfalo, desnacionalizado e sustentado por uma produção que assenta em meros desejos e quimeras impostos aos consumidores por uma máquina publicitária implacável, lhe quer determinar e, também, a todos os povos do mundo.
Já não se trata de um afrontamento entre a Direita e Esquerda por causa de uma lei declaradamente favorável ao desenvolvimento de um capitalismo cada vez mais atrevido e impositivo. Um capitalismo globalizante capaz de determinar regras que até podem, à primeira vista, e numa perspectiva pontual, parecer quase justas, «normais», «convenientes». Mas o cidadão francês tem consciência política e vislumbra o alcance das propostas governamentais e onde elas vão desembocar, por isso, independentemente da simpatia partidária, quer garantir a justiça social. Só assim se justificam os milhões de manifestantes. A célebre lei, hoje já vulgarizada pela sigla CPE, é a garra do capitalismo brutal que se mostra. Um capitalismo que sacrifica tudo e todos à satisfação dos seus interesses.
Que Esquerda pode surgir deste braço de ferro que se trava no parlamento francês e nas ruas das maiores cidades de França? Eis a pergunta que, julgo, devemos deixar suspensa, porque logo outra se coloca com igual pertinência: haverá lugar a uma nova Esquerda? Uma Esquerda simultaneamente representativa das liberdades individuais e dos interesses colectivos? Capaz de perceber que a globalização contém em si mesma a exaustão dos recursos naturais, provocando a catástrofe ecológica já anunciada.
A França clama, neste momento, contra uma lei que desprotege a juventude, mas que mostra o esboço do hediondo monstro de um capital sem cabeças onde se possa atirar para matar. A França não quer pactuar com um futuro definido por uma globalização escravizante. E não quer, porque tem consciência de ser suficientemente rica para enfrentar o futuro dentro de um quadro de equilíbrio e justiça. Assim todos quantos se reclamam representantes da Esquerda tivessem a coragem de dizer: — Basta. É tempo de acabar com os predadores!

sábado, março 18

Um Estado a abrir falência

Passou-se ontem em Lisboa. Foi um simpósio sobre Segurança Social, realizado na tentativa de buscar novas soluções para este problema.
O Governo deu todos os sinais de que o Estado português está em situação de abrir falência. Falência por não ter outra saída (o que eu não acredito) ou por ter enveredado pela via das afirmações fraudulentas.
Realmente, quando uma das propostas é a de serem as empresas a criarem os seus próprios fundos de reforma, segundo o jornal Correio da Manhã de hoje, «à semelhança dos bancários», isto quer dizer que o Estado não dá garantias de solvência dentro de poucos anos. Mas pior, é a rejeição do modelo de Estado-providência que tinha sido definido depois da Grande Depressão, nos Estados Unidos, no final dos anos 20 do século passado.
Como é possível governantes responsáveis apresentarem uma proposta desta natureza? Uma proposta onde à entidade patronal caberá uma comparticipação da ordem dos vinte por cento e aos empregados uma quota de um pouco mais de dez por cento dos salários de cada trabalhador, tudo isto contra benefícios de ordem fiscal favoráveis à empresa. Só pode ser brincadeira ou pura irresponsabilidade!
Então vai transferir-se para a pseudo idoneidade das empresas (logo, dos empresários) a garantia do futuro na velhice dos trabalhadores, sabendo-se que este é o segundo momento mais frágil da vida do Homem?! Isto só pode partir de cabeças ou eticamente mal formadas ou da mente de alguém que tem andado a dormir todos estes anos!
Num país onde a divida das empresas à Segurança Social nem está ainda completamente apurada, onde os empresários fazem mão baixa dos descontos dos trabalhadores e não contribuem com a sua quota parte para a reforma e outros benefícios de quem para eles labora, propor que sejam essas entidades a criar os seus próprios fundos de reforma, só pode ser entendida como uma piada de mau gosto!
Num país onde é permitida a deslocalização de grandes empresas as quais, de um dia para o outro, encerram as portas e despejam os trabalhadores na rua como se de lixo se tratasse, há um Governo que apresenta publicamente uma proposta como aquela que vem noticiada nos jornais de hoje!
Está tudo louco!
Estamos a cair no mais fundo buraco do liberalismo do século xix, com uma diferença fundamental: agora a solicitação ao consumo, em especial desnecessário, é imensa. Hoje toda a gente se deixou enredar nas malhas do mercado. Há países onde os trabalhadores, as famílias, estão permanentemente endividadas. Isto tornou-se um ciclo vicioso: trabalha-se para pagar os empréstimos que se contraem na compra da casa, do automóvel, do mobiliário, do vestuário, do computador, do telemóvel, das férias e viagens, da água, da luz, do telefone, enfim, de tudo.
Já alguém imaginou como seria se a totalidade dos trabalhadores, de um mês para o outro, deixasse de pagar as dívidas que contraiu e resolvesse comprar exclusivamente o que necessita para a sua sobrevivência diária? Em menos de meio anos instalava-se o caos neste planeta a que chamamos Terra. As empresas, as maiores e as mais pequenas, abriam falências em série, os despedimentos seriam absolutos a paralização aconteceria em curto lapso de tempo. E tudo isto porquê?
Porque estamos a viver acima dos rendimentos que auferimos garantidamente todos os meses; porque estamos em constante super produção; porque se aposta na obsolescência em tempo oportuno dos produtos fabricados para manter a máquina fabril em constante laboração. A economia e as necessidades estão sobredimensionados. Ora, o Governo português não é composto de tolos. Acabei de expor o essencial que qualquer político deve saber. Então, a pergunta que me não canso de fazer resume-se a uma frase: onde está a honestidade dos nossos governantes?
Portugal encontra-se à beira de falir e entrar em «liquidação total». Resta-nos que os credores — afinal todos nós e mais todos os estrangeiros financiadores deste estado de coisas — sejam capazes de se reunir em «assembleia» e tomar decisões sobre o futuro. Mas não passando por soluções fraudulentas como estas que os nossos governantes estão a tentar impingir-nos!

Alguma coisa muda, efectivamente

Tenho de dar a mão à palmatória, como se diz na sabedoria popular, porque há bens poucos dias, neste mesmo local, afirmava, muito convicto, que nada ia mudar em Belém com a saída do Presidente Sampaio e a entrada de Cavaco Silva. Ora, alguma coisa mudou já e para pior.
Mudou, mostrando o lado revanchista da direita a ocupar a mais alta magistratura da Nação. Mudou o sentido de equilíbrio e equidade do Conselho de Estado através dos elementos escolhidos pelo Presidente da República. Com efeito, tendo o CDS/PP sido o partido menos votado nas últimas eleições e, por conseguinte o de menor representação parlamentar entre os quatro tradicionais há cerca de trinta anos — PS, PSD, PCP e CDS — eis que Cavaco Silva, retira da sua lista de conselheiros o representante do PCP e inclui um do CDS/PP. Com esta simples manobra e por força da distribuição feita no âmbito da Assembleia da República, o Partido Comunista deixa de ter assento no órgão consultivo da Presidência da República.
Uma tal atitude não teria significado relevante se o Governo estivesse a adoptar e a prosseguir uma política com forte pendor de esquerda, que não está, ou se o Presidente da República fosse proveniente de uma área política de matiz de esquerda, que não é. Assim sendo, as escolhas de Cavaco Silva mostram uma tendência de viragem à direita para acelerarem o neo-liberalismo de Sócrates.
Vamos ver quais vão ser as próximas movimentações do «homem que veio de Boliqueime» para presidir à República!

segunda-feira, março 6

Nada muda, efectivamente

Faltam poucos dias para que Jorge Sampaio faça entrega das suas funções de Presidente da República a Cavaco Silva.
Alguns Portugueses perguntam-se o que vai mudar em Belém. Pois, na minha opinião, para além da cor de alguns cortinados nas janelas e um ou outro pormenor, tudo, do mais importante, ficará na mesma. Por enquanto, o estilo vai ser semelhante ao anterior. E, passados um ou dois anos, tudo se manterá. Porquê?
Porque o Presidente da República, em Portugal, não governa. Limita-se a tentar influenciar quem o faz. Ora, a influência de uma governação mais à direita, de momento, não é possível nem conveniente e «puxar» para a esquerda não está nos ânimos do futuro Presidente. Por isso, tudo ficará como até aqui.
A «tranquilização» económica que se admitiu, durante a campanha eleitoral, iria ser posta em prática por Cavaco Silva foi «milho aos pombos»! Ou seja, foi um processo de juntar o que andava disperso e conseguir o número desejado de eleitores. A entrada de Portugal na área do Euro fez fugir ao controle da banca nacional, em especial do Banco central, a execução de políticas financeiras que poderiam alterar o rumo dos acontecimentos económicos. Quanto mais o país se precipita na incapacidade de sobrelevar a crise, cavando mais fundo o deficit orçamental (por adopção de políticas fiscais que atrofiam as políticas económicas), mais dependente está da evolução europeia. Entrámos numa espiral invertida cuja travagem não se vislumbra possível no curto nem no médio prazo. As fortunas pessoais não são produtivas nacionalmente e como o que imperou nos dez anos de Governo Cavaco Silva foi o enriquecimento pessoal ao invés do nacional, o tecido produtivo está a esboroar-se continuamente por falta de uma política proteccionista que não pode ser efectivada dadas as regras definidas por Bruxelas. O que ontem não se acautelou, hoje está perdido.
Portugal cada vez mais é menos dos Portugueses e os Portugueses cada vez mais são menos de Portugal. E quanto mais o Estado se dilui e se desfaz do desempenho de um papel activo na economia (como interventor e corrector dos desvios que prejudicam os Portugueses), menos a solução da crise está na sede do Governo nacional. A solução não fica à deriva; vão ser os grandes interesses estrangeiros quem a controlará, mas isso não quer dizer que o façam no sentido de um melhor trem de vida dos e para os Portugueses.
A única solução visível é o aumento do egoísmo (que, por definição, é sempre individual!). Salve-se quem puder, porque os velhos, os inválidos e os desempregados, dependentes do Estado por terem acreditado no sistema de segurança social que norteou as nossas vidas durante os últimos anos do regime fascista e a primeira década após 25 de Abril, porque esses estão perdidos! Cada vez mais o Estado vai tentar descartar-se dos encargos sociais que tinha assumido honestamente com os cidadãos. O Estado tem de ser, na conjuntura actual, uma pessoa desonesta e credora de pouca confiança. Estamos a voltar aos tempos da consolidação do Liberalismo, depois da vitória de D. Pedro iv, em 1834, com a agravante de que a maioria de nós, classe média, já não é agricultora e de que a agricultura já não é salvação para ninguém. Agora somos todos verdadeiros proletários que, de nosso, só possuímos a força de trabalho para vender pelo mais baixo preço.
Ao que nós chegámos!

sábado, fevereiro 18

É a loucura ou o fim?

Este país está, como qualquer velho navio de madeira, a abrir brechas por todo o lado e já não há bomba escoadora que o salve de flutuar com água até à amurada.
Então não é que o ministro da Saúde anunciou que o utente vai passar a pagar, pelo menos, metade dos gastos hospitalares, de internamento e restantes alcavalas? Claro que, por pressão do gabinete do primeiro-ministro, ao fim da tarde, já metia os pés pelas mãos e quase dava o dito por não dito.
Todos os recuos neste domínio são perdas de regalias sociais inadmissíveis e que nos empurram, de novo, para os anos 40 do século passado. Com efeito, as gerações mais novas já não se lembram, mas, na altura, para se conseguir internamento nos hospitais civis, ser tratado (mal) em enfermarias imensas, por pessoal desumanizado pelo exercício de uma profissão que tinha respaldo para atitudes despóticas no próprio Governo, era necessário recorrer a uma declaração da Junta de Freguesia na qual se atestava a pobreza ou indigência do doente. É para isto que caminhamos? É para situações deste tipo que nos leva o progresso tecnológico?
O mal do desgoverno no Ministério da Saúde é a ausência de mão forte sobre os administradores hospitalares, responsabilizando-os pecuniária e criminalmente pelos excessos de verbas, pelos desvios de material, pelo malbaratar dos dinheiros. Seja a mão bem pesada sobre a cabeça do mais responsável e dê-se-lhe a possibilidade de ele usar igual peso sobre as cabeças que da sua autoridade dependem. O sistema endireita-se de imediato. Naturalmente que, «enquanto a culpa morrer solteira» neste país de opereta, todos os desmandos vão ser possíveis, recaindo, no pobre contribuinte e utente, o encargo de continuar a alimentar uma máquina de irresponsabilidades e de irresponsáveis.
Para quem esteja já a imaginar-me a fazer a apologia de um sistema político «musculado», do tipo ditatorial, desiluda-se. Eu preconizo responsabilidade e responsabilização com um sistema judicial célere e expedito dentro do respeito das normas democráticas e do exercício das liberdades respectivas.
Se acuso o Governo de desgovernar é porque, ainda há dias, vi uma notícia assaz curiosa na comparação com as declarações do ministro da Saúde.
Então não é que os presidentes das Juntas de Freguesia se acham mal pagos e querem aumentos de salário?!!
Em primeiro lugar, isto dá bem a noção de como andamos todos ao Deus dará, uns, pedindo aumentos e, outro, anunciando cortes. O que faz o primeiro-ministro e o seu gabinete de apoio? Onde está a coordenação que deve existir? Onde podemos encontrar a linha estratégica que deve orientar todos, desde Sócrates até ao mais insignificante representante do Poder local? Como dizia, com muita graça, um meu Amigo, há muitos anos, «se o país fosse uma orquestra, cada figura tocava a música que sabia». E, realmente, «cada um toca o que sabe» e a desafinação é total.
Mas a verdade é que mil quinhentos e cinquenta presidentes de Junta de Freguesia se preparam para reivindicar o pagamento de 750 euros mensais, mais ajudas de custo para deslocações. Curioso é que estes autarcas já recebem, por trabalho a meio tempo, uma média de 500 euros por mês. Assim se está a formar uma classe política profissional que, em nome da «dignificação da função», se vai sentando à mesa do orçamento. Claro que, para pagar estas pequenas mordomias, a políticos e influentes locais, têm de se fazer restrições nos orçamentos de actividades fundamentais como seja a Saúde e a assistência na doença a quem dela precisa pelo desempenho de funções – esses sim – que carecem de ser dignificadas.

segunda-feira, fevereiro 13

Não tarda, ela está aí...

A gripe das aves cada vez está, geograficamente, mais próxima de Portugal. Faltará pouco para que chegue até nós!
Nos jornais estrangeiros (espanhóis, franceses, italianos e britânicos), aos quais todos os dias dou uma vista de olhos, as notícias sobre a gripe das aves vêm na primeira página. Nos nossos, quase reina o silêncio.
Ter-se-ão tomado todas as previdências neste país de improvisadores? Ou só estamos a viver de «fachada», tal como com os incêndios das florestas?
Com o Sistema Nacional de Saúde degradado e com as privatizações dos estabelecimentos hospitalares, será que a resposta a uma epidemia vai ser a mais apropriada?
Desculpem-me os poderes públicos e sanitários deste país, mas não acredito! Não acredito nas afirmações que proferem, porque em situações de crises virais graves, os hospitais não sabem como proceder ou, sabendo, não procedem por falta de meios ou de pessoal. Aliás, entre nós, raramente se fazem simulações de catástrofes para se testarem os meios envolvidos. É o resultado da tão badalada capacidade de improviso. Da qual até fazemos gala!
Alguém já ouviu falar da simulação de queda de um avião na zona da cidade universitária? Da simulação de falência da ponte «25 de Abril»? Do treino sobre o descarrilamento de um comboio algures entre Lisboa e o Porto? Da evacuação de feridos, em caso de terramoto numa das nossas grandes cidades? Será que estão identificados os bairros onde se poderão verificar mais derrocadas? Tudo isto é protecção civil. Protecção civil que, no nosso país, conta muito com os favores da providência divina. Queira Deus que nesse dia, se o houver, ela não esteja distraída!
É tempo de preparar o futuro, para que depois não se chore por falta de previsão. Pessoalmente gostava de poder acreditar nos responsáveis...

sexta-feira, fevereiro 10

As caricaturas da discórdia

Não vou adiantar muito ao muito que se tem dito sobre este tema. Contudo, não lhe posso ficar indiferente.
Não julguem os meus leitores que desejo repetir argumentos já estafados. Não. Tentarei ser original.
Assim, tanta culpa têm os países e órgãos de imprensa que publicaram e publicitaram as caricaturas como os povos islâmicos que semearam a desordem em nome de uma ofensa à sua fé. Todos são culpados! E são-no pelo simples facto de todos querem impor a «sua» razão aos outros. Na Europa e no mundo não islâmico, mas democrático, reclama-se o direito que resulta da liberdade de expressão; no mundo muçulmano, reclama-se, porque a mais elementar sensibilidade deveria respeitar a religião e os povos crentes em Alá. No fundo, são duas vontades que se opõem em nome de valores diferentes e, por isso, irreconciliáveis. Irreconciliáveis por falta de tolerância, por excesso de fanatismo nos valores em que dizem acreditar.
O fanatismo de ambas as partes quase resulta em obscurantismo. É que, mesmo em democracia e vivendo no mais amplo dos sistemas de liberdade, pode cair-se no obscurantismo quando se leva a liberdade ao ponto de não aceitar as diferenças no outro. Julga-se, então, ter a liberdade de agredir a liberdade de quem pensa ou age de modo diverso do nosso.
O que, afinal, está em causa e resulta em pomo de discórdia são duas culturas, duas atitudes perante a Vida que se batem pela suas crenças. Só compreendendo isto é que se pode entender e resolver o diferendo. Cabe ao lado mais inteligente, mais apto para a abertura, tomar iniciativas. E o lado que em melhor posição está de o fazer é a Europa democrática.
Evidentemente, não se coloca como modo de solucionar o problema instituir uma auto-censura na nossa cultura. Não se trata disso. Deve-se procurar agir com inteligência, porque a História está cheia de guerras cuja única explicação passa pela incapacidade de transigir perante diferenças meramente culturais. Foi o caso de tantos conflitos religiosos!
A primeira coisa a fazer é perguntar:
- O que é que se adiantou, publicando as caricaturas que tanto impacto causaram no mundo muçulmano? Em rigor, absolutamente nada! Fez-se uma afirmação de uma coisa que já se sabia: na Europa há liberdade de expressão e, mesmo assim, isto ainda é discutível (mas demos de barato esse facto).
- Valia a pena fazer essa afirmação, tendo consciência de que se ia provocar uma reacção adversa numa cultura que não entende os valores da nossa? É evidente que não. Não se ia ganhar mais nada e só se acirravam ódios que já estavam ao rubro.
Assim sendo, e assumindo que a ponderação e a sensatez falam mais alto do que os seus contrários, o acto praticado foi estúpido, por falho de inteligência. O nosso Povo diz, e tem razão, «Não é com vinagre que se apanham moscas».
Importante, neste momento é esquecer o triste acontecimento e evitar que situações desta natureza se repitam, porque se a cultura ocidental é mais esclarecida que a islâmica – eu diria, simplesmente é diferente - vale a pena demonstrá-lo na prática. Tudo o mais é desenvolver violência gratuita e sem finalidade.