domingo, abril 30

Os Portugueses que nós somos

Haverá, realmente, uma cultura portuguesa?
Esta tem sido uma das perguntas que, de há vários anos a esta parte, se vem colocando aos intelectuais do nosso país. Hoje, mais do que nunca, num mundo no qual se procura uniformizar comportamentos tem grande fundamento a interrogação que expressei. E tem, porque toda a gente vai para as estâncias de férias da moda, veste-se segundo os padrões definidos pelos costureiros internacionais, usa o carro que é mais badalado, utiliza, até à exaustão, o idioma inglês, admira e copia, nos comportamentos, as individualidades mais na berra, enfim, numa só expressão, deixa-se condicionar pela máquina publicitária.
Sem procurar ser demasiado optimista, julgo que ainda são possíveis descobrir, aqui e além, traços da manifestação cultural, verdadeira e autónoma, dos Portugueses.
Claro que, quando me refiro à «cultura portuguesa», falo daquilo que os antropólogos definem como sendo tudo o que o Homem acrescenta à Natureza. É, afinal, o resultado da luta que vamos travando no local onde vivemos, trabalhamos e acabamos por morrer, contra todo o tipo de adversidades, ou como tal sentidas, que nos chegam de fora. Isso é «cultura». Cultura erudita é outra coisa; são as manifestações mais ou menos artísticas produzidas para deleite intelectual de quem as faz e gozo ou usufruto de quem as adquire ou simplesmente aprecia!
Aclarados conceitos, parece-me, posso concluir que, no fim das contas, a cultura é sempre o resultado de sucessivas misturas que se caldeiam ao longo dos anos, dos séculos e dos milénios, sendo nosso o que também já foi dos outros e adaptámos.
Do mesmo modo que o comum dos Portugueses quando se olha ao espelho poderia, com uns pequenos retoques, ser confundido com um Magrebino ou um Turco, também na nossa cultura (no sentido vulgar e no erudito) existem lampejos desses muçulmanos que durante mais de quinhentos anos estiveram na Península Ibérica e à qual chamavam sua. E cinco centúrias são qualquer coisa como o tempo que vem desde a chegada de Pedro Álvares Cabral ao Brasil à actualidade!
Brincam os nortenhos, chamando à gente do Sul de Portugal mouros. Eles também não podem eximir-se a essa herança! A diferença está em menos uma ou duas centenas de anos ou qualquer coisa que o valha. O baluarte galego-duriense terá consolidado a sua posição cristã entre o século IX e X, havendo antes estado sujeito à forte influência islâmica desde o século VIII.
Foi por ser centro de fixação de povos cristãos, vindos da Europa mais cedo, que o Norte de Portugal, precocemente, se «misturou» e descaracterizou da matriz mourisca. Mas como o Sul é, geograficamente, maior que o Norte, foi aqui que o Poder político – desde os tempos mais recuados – preferiu viver, dando uma clara prevalência aos valores de aquém-Mondego sobre os da região que lhe fica por cima. O modo de falar a Língua Portuguesa é disso o testemunho mais notável.
Somos iguais, mas diferentes. Uma diversidade, felizmente, ainda visível. É, talvez, nessas distinções que poderemos encontrar o substracto da cultura portuguesa, aquilo que nos distingue como um todo dos restantes povos europeus e do mundo.
Estranha e paradoxalmente, os elementos que nos uniformizam internamente – os meios de comunicação de massas com especial relevo para a televisão – são os mesmos que nos podem destruir a personalidade no conjunto dos povos, porque, levada longe demais a acção uniformizadora tenderá a ultrapassar fronteiras e, qual maremoto, arrasar tudo por onde passa. Levará muitos anos, mas é para aí que a humanidade se encaminha.
O mais recente atentado à individualização dos povos e à da sua cultura arribou de uma maneira erudita, de uma forma aplaudida por muita gente: o acordo de Bolonha!
Sim, o acordo de Bolonha. Aquele que vai reduzir a duração dos cursos de licenciatura de quatro para três anos e possibilitar a circulação dos alunos entre universidades europeias. Em nome de um espaço político e económico, destruir-se-á um espaço de diversidade cultural. São as «catedrais do saber» e os seus «sacerdotes» quem alegremente embalam a massificação.
Defendamos o que ainda pode ser defendido.

sábado, abril 22

Alguns problemas económicos

Hoje serei diversificado. Apontamentos curtos, mas incisivos.
Em 1973, quando houve a primeira grande subida de preço do petróleo, estava eu em Moçambique, mais concretamente colocado no Batalhão de Caçadores Pára-quedistas n.º 31 (BCP-31). Para mim, enquanto cidadão, foi só ligeiramente preocupante, pois, na altura, tinha um (saudoso) Fiat 600, consumindo gasolina normal e, acima de tudo, muitíssimo pouca. Contudo, para os vizinhos da, então, Rodésia, de Ian Smith, a questão assumiu proporções gravíssimas, visto dependerem do oleoduto da Beira por onde lhes chegava o abastecimento e a Armada britânica não haver reduzido, de forma notável, o bloqueio ao abastecimento. A atitude dos brancos e dos negros da Rodésia foi, aceitando o aconselhamento governamental, tudo fazerem para reduzir o consumo petrolífero. Nas rádios e na televisão ouvia-se, furiosamente repetido, o slogan «Don’t try Rhodesia dry». Havia consciência cívica da dependência do petróleo e de como evitar gastá-lo desnecessariamente.
Vem isto a propósito da notícia saída no Le Figaro de hoje, dia 22 de Abril. Com efeito, em França, 50% dos condutores reduziram a utilização das suas viaturas por causa do aumento de preço dos combustíveis. E por lá, os salários são bem mais elevados do que em Portugal! Aqui, basta olhar para a circulação automóvel na cidade de Lisboa e para as saídas em regime de mini-férias na semana da Páscoa, agora nesta do feriado de Abril e, muito provavelmente, para o que vai acontecer no primeiro dia de Maio.
Vivemos como se estivéssemos no mais rico país da Europa.
Qualquer coisa vai mal entre nós. A economia paralela está de muito boa saúde e os hábitos consumistas, adquiridos nos tempos do Governo Cavaco Silva, implantaram-se em absoluto. Curiosamente, o exemplo, mau, vem de onde não devia vir: dos deputados que fazem «ponte» e gazeta ao plenário da Assembleia da República, dos responsáveis municipais que mantém as iluminações nocturnas de todos os monumentos públicos, tal como se nadássemos em energia eléctrica barata e do próprio Governo que autoriza o funcionamento das televisões até altas horas da madrugada.
Nunca ninguém me ouviu ou ouvirá fazer a apologia do Estado Novo e dos seus governantes, contudo, nesse tempo o Poder político era coerente: em situação de crise não havia iluminações públicas no Natal, dos monumentos e a televisão encerrava os seus trabalhos antes da meia-noite.
Democracia não pode ser sinónimo de regabofe, de falta de fiscalização fiscal, de inconsciência e de ausência de civismo. Não se podem exigir sacrifícios a uns quantos e permitir o desbarato a outros.
Quando é que o Governo acorda para a verdadeira justiça social e para a equidade?

Segundo o jornal Le Monde, de 11 de Abril, em Washington, admite-se a hipótese de empregar armas nucleares tácticas no Irão, no caso de se desencadearem operações militares contra aquele país.
Pergunto-me: - para além de, com as acções militares no mundo, o Governo dos Estados Unidos procurar manter o nível de bem-estar económico da sua população, que futuro desejam os Americanos para o Médio Oriente? O caos? A desordem a todo e qualquer preço? A ruína da economia europeia? De certeza que o fim do terrorismo não o buscam, porque ele aumentou exponencialmente depois do ataque ao Iraque.
Atacar o Irão é desencadear, sem controlo, o ímpeto dos islâmicos mais radicais e - quem sabe? – o dos moderados, até porque toda a compreensão tem limites.
Vamos ver onde desemboca este desenrolar de acções e provocações mútuas.

Ontem, dia 21 de Abril, o mesmo jornal francês – Le Monde – fazia eco de notícias vindas de Espanha. Daquela Espanha que nós Portugueses tanto admiramos por ter conseguido um salto no desenvolvimento económico. E o que se dizia?
Pois bem, os economistas espanhóis estão a ficar preocupados porque o boom ou «milagre» económico do seu país, segundo eles, se deve ao crescimento da construção civil e à venda de habitações a preços concorrenciais. Todavia, com o aumento das taxas de juro no mercado financeiro europeu, a compra de casas vai ser fortemente afectada, levando a que a procura decresça e haja uma recessão interna com as consequências respectivas sobre toda a economia espanhola.
Os benefícios da liberalização têm um preço altíssimo: as crises cíclicas. Na busca de novas «aventuras» económicas os interessados na ampliação dos seus rendimentos esquecessem de estudar a História, a História do século XIX e do começo do século XX. Foi a ânsia de levar mais longe os lucros empresariais que se tornou responsável, em última análise, pelas duas guerras do século passado. Que os conselheiros dos decisores políticos das grandes potências tenham presente isso mesmo, é a nossa única esperança.

domingo, abril 16

Ganharam... Até quando?

Os Franceses ganharam a batalha contra uma lei que deixava já mostrar as garras do neo-capitalismo afirmado e firmado internacionalmente. Foi uma luta dura, um braço de ferro feroz.
Ganharam... E agora? Será que o capitalismo, na sua máscara mais hedionda, vai desarmar? Julgo que não. Os Franceses conseguiram, simplesmente, adiar uma situação. Adiar não é resolver.
Ao analisar as ideologias políticas no mundo de hoje percebemos quanta falta faz aos trabalhadores a existência do bloco comunista. Não que eu partilhe do ideal marxista, mas como politólogo não posso deixar de compreender o desequilíbrio gerado com a falta de bipolarização que, durante cerca de cinquenta anos, gerou a possibilidade de se desenvolver uma esquerda interventora e plural que lutava contra as arremetidas do capitalismo peado pelo receio de ter de enfrentar militarmente o bloco de Leste.
Foi à sombra da existência desse equilíbrio que o chamado Terceiro Mundo se conteve numa espécie de neutralidade bipolar. O facto das grandes potências da época não se enfrentarem, mas, pelo contrário, usarem terceiros para medir possibilidades deu às forças da esquerda democrática não enfeudada a Moscovo a hipótese de desenvolver uma forma de reivindicação que veio a desembocar naquilo que se chamou social-democracia, ou seja, o Estado assumir-se como entidade protectora da sociedade e dos mais carenciados. E de tal forma esta ideologia socio-económica se implantou que, mesmo quando eram Governos de direita a assenhorear-se do Poder, ela subsistiu e manteve-se dentro de padrões considerados aceitáveis como modo de protecção social.
O desaparecimento do bloco comunista levou, por um lado, à desagregação ideológica do Terceiro Mundo, ficando a dar peso a alguns Estados até então com ele identificados o facto de serem grandes produtores de petróleo, e, por outro, enfraqueceu toda a capacidade reivindicativa da esquerda democrática. Esta, lentamente, foi tendo de pactuar com o avanço descarado do capitalismo globalizado e globalista. As mudanças de carácter económico que se operaram no mundo, em menos de quinze anos, consolidadas no poder do capital globalizador, não encontraram ainda uma esquerda capaz de fazer recuar esse mesmo capital imperial. Curiosamente, parece ter havido uma deslocação da luta política para um outro tipo de confronto que nos surge mais tido como religioso: o afrontamento entre os Estados ditos de matriz judaico-cristã e os de origem islâmica. O equivalente aos movimentos terroristas e radicais de esquerda que caracterizaram as décadas de 60 e 70 do século XX espelham-se hoje no fundamentalismo islâmico através da prática de um outro tipo de terrorismo, mais suicida do que aqueles outros. A par das reivindicações laborais, fruto do aumento incontrolado do desemprego, dos baixos salários praticados e da instabilidade laboral, as sociedades euro-asiáticas tendem para o confronto entre etnias, começando a esboçar-se problemas do âmbito xenófobo.
Parece que o empenhamento do capitalismo global só pode ser detido por um de dois processos: ou pela ruptura e confronto étnico-religioso ou pela reafirmação de uma ideologia de esquerda suficientemente credível que abarque em simultâneo as duas fontes de instabilidade (política e social). Curiosamente, tem sido a França o «laboratório» onde se têm ensaiado os diferentes tipos de conflitos.
Para quando uma nova doutrina política capaz de arregimentar as forças de oposição ao capital?

quarta-feira, abril 5

Eles comem tudo...

Foi em Maio, há trinta e oito anos. A Europa e, talvez uma grande parte do mundo, acompanhou com apreensão os acontecimentos em França. A juventude universitária, à qual se juntou a voz dos operários, reclamava, exigindo reformas profundas. Ficou célebre o slogan «Imaginação ao Poder». Depois da recuperação da 2.ª Guerra Mundial e da ocupação nazi, do desastre militar na Indochina, da guerra e retirada, a descontento de muitos, da Argélia e, depois, acima de tudo, do boom económico dos anos 50 do século XX, os Franceses — os jovens Franceses — queriam novas perspectivas de vida, emprego assegurado após a conclusão dos estudos. E tudo isto porque a França estava a atravessar um período que parecia favorável à implantação prática das ideias de uma esquerda política liberal e liberalizante.
Decorridos trinta e oito anos, caído o muro que envergonhava os Europeus, desfeito o sonho de um Estado socialista, afirmada a superioridade de uns Estados Unidos pacóvios apoiados e «nobilitados» por um entendimento com a Grã-Bretanha quase subserviente, vivendo um modelo novo de capitalismo velho, os jovens Franceses gritam ao mundo e aos seus governantes que não aceitam as regras de uma concorrência cega e, acima de tudo, injusta. A França revolucionária está a dar os primeiros passos para contraditar a viragem acelerada que o capital acéfalo, desnacionalizado e sustentado por uma produção que assenta em meros desejos e quimeras impostos aos consumidores por uma máquina publicitária implacável, lhe quer determinar e, também, a todos os povos do mundo.
Já não se trata de um afrontamento entre a Direita e Esquerda por causa de uma lei declaradamente favorável ao desenvolvimento de um capitalismo cada vez mais atrevido e impositivo. Um capitalismo globalizante capaz de determinar regras que até podem, à primeira vista, e numa perspectiva pontual, parecer quase justas, «normais», «convenientes». Mas o cidadão francês tem consciência política e vislumbra o alcance das propostas governamentais e onde elas vão desembocar, por isso, independentemente da simpatia partidária, quer garantir a justiça social. Só assim se justificam os milhões de manifestantes. A célebre lei, hoje já vulgarizada pela sigla CPE, é a garra do capitalismo brutal que se mostra. Um capitalismo que sacrifica tudo e todos à satisfação dos seus interesses.
Que Esquerda pode surgir deste braço de ferro que se trava no parlamento francês e nas ruas das maiores cidades de França? Eis a pergunta que, julgo, devemos deixar suspensa, porque logo outra se coloca com igual pertinência: haverá lugar a uma nova Esquerda? Uma Esquerda simultaneamente representativa das liberdades individuais e dos interesses colectivos? Capaz de perceber que a globalização contém em si mesma a exaustão dos recursos naturais, provocando a catástrofe ecológica já anunciada.
A França clama, neste momento, contra uma lei que desprotege a juventude, mas que mostra o esboço do hediondo monstro de um capital sem cabeças onde se possa atirar para matar. A França não quer pactuar com um futuro definido por uma globalização escravizante. E não quer, porque tem consciência de ser suficientemente rica para enfrentar o futuro dentro de um quadro de equilíbrio e justiça. Assim todos quantos se reclamam representantes da Esquerda tivessem a coragem de dizer: — Basta. É tempo de acabar com os predadores!