terça-feira, julho 4

Beira, Moçambique - Um depoimento para a História

Estava eu colocado no Batalhão de Caçadores Pára-quedistas n.º 31, cuja aquartelamento era na cidade da Beira, junto das instalações da Base Aérea n.º 10, quando, corria o mês de Julho de 1973, inesperadamente, o comandante da unidade me mandou chamar. Informou-me da necessidade imediata de serem adquiridas rações de combate. Era tal a quantidade que, somando as existências no Batalhão, mesmo assim não eram suficientes, sendo preciso que a Manutenção Militar fizesse um fornecimento extra. Quando requisitei um transporte automóvel para ir à cidade - já que a Base e o Batalhão ficavam junto do aeroporto, a alguns quilómetros do centro - a resposta que obtive foi negativa; todas estavam empenhadas no serviço da companhia operacional que se encontrava em reserva na unidade. Se a primeira ordem me deixara intrigado, a explicação para a falta de viaturas gerou em mim uma enorme dúvida. Algo estranho estava a passar-se!
Não foi preciso muito para, horas depois, quando procedia à entrega das rações a um dos capitães que comandava a companhia, ficar a saber o motivo de tão inesperado afã. Recebera-se ordem para fazer seguir, com urgência, para a área do Parque Nacional da Gorongosa, distante da Beira cerca de cem quilómetros, a companhia que estava em repouso, pois haviam sido detectados grupos de guerrilheiros naquela zona. Tratavam-se das primeiras manifestações do cerco que a FRELIMO pretendia iniciar ao porto de mar e cidade da Beira. A estratégia era simples: gerar a instabilidade na área abastecedora dos materiais destinados à gigantesca barragem de Cabora Bassa, dificultando ao máximo a circulação automóvel e ferroviária entre a segunda cidade de Moçambique, Tete e a fronteira com a Rodésia. Chegara a vez do chamado «corredor da Beira» sofrer os efeitos da guerrilha.
Os pára-quedistas foram para a Gorongosa, actuando inicialmente à paisana para não causarem dano ao fluxo turístico sul-africano que demandava o Parque. Foi insustentável, por muito tempo, este disfarce; no começo do ano seguinte as tropas passaram a operar, fazendo uso dos seus uniformes de campanha.
Quando a FRELIMO abriu a frente de Tete, por volta do final do ano de 1968, dando início às acções de propaganda e guerrilha, nunca desenvolveu qualquer actividade terrorista; actuava sobre as colunas militares ou logísticas, mas jamais praticou o desenvolvimento do terror com base em ataques indiscriminados sobre populações indefesas, fossem brancas ou negras, isoladas ou em conjunto. Sabia, perfeitamente, que esse era o caminho para não ser aceite!
Nas cercanias da cidade da Beira - mais exactamente na pequena povoação do Dondo - vivia o engenheiro Jorge Jardim e família (sendo que uma das filhas mais jovens era a, hoje muito colunável, Cinha) e tinham aquartelamento os célebres GE’s (Grupos Especiais) e os GEP’s (Grupos Especiais Pára-quedistas). Quem eram e o que faziam?
Tratava-se de uma milícia negra, enquadrada por militares europeus que os treinavam, e que actuavam como tropa de reforço em operações especiais, não estando, por conseguinte, ligadas à quadrícula normal das forças do Exército. Constituíam um misto entre as companhias de caçadores especiais (preparadas em Lamego), as companhias de comandos e as companhias de pára-quedistas, com diferença de serem operacionalmente comandadas por graduados negros apoiados na experiência de militares europeus. Era uma milícia fortemente inspirada nas teses do enigmático engenheiro Jorge Jardim! Eram, de certeza, o embrião das futuras Forças Armadas moçambicanas (de um Moçambique independente, governado por Brancos e por um ou outro Negro, bem escolhido, para justificar a mestiçagem!).
Nos últimos dias de Dezembro de 1973 ou nos primeiros de Janeiro de 1974, na zona de Vila Pery (hoje Chimoio), ocorreu a morte de um casal de fazendeiros europeus. Ao que parece, foram barbaramente chacinados.
Este modo de agir não fazia parte dos cânones de actuação dos guerrilheiros; parecia algo próximo de uma vingança ou mero banditismo. Mas tal interpretação fugia por completo ao entendimento da população branca de Vila Pery e, mais ainda, dos europeus residentes na cidade da Beira. E isso explicava-se de forma singela: a guerra era um assunto distante que não os preocupava pois dela se encarregavam os militares idos de Portugal e os recrutas negros arrebanhados para um conflito do qual não percebiam claramente os contornos. A própria geografia da colónia justificava o alheamento: tudo se passava a muitas centenas de quilómetros de distância; mesmo Tete ficava a várias centenas de quilómetros da Beira. Acresce, às justificações aduzidas, a censura que sofriam os órgãos de comunicação social, proibindo referências de qualquer tipo à guerra que se desenrolava no Norte e na península ou saliente de Tete.
Colocados de chofre perante o que julgaram tratar-se de uma acção de guerrilheiros, os europeus da cidade da Beira, aparentemente sem qualquer tipo de organização prévia, iniciaram uma atitude de protesto, de começo, visando chamar a atenção das autoridades administrativas e, depois, de contestação contra o Exército. É sobre este acontecimento que posso dar o meu testemunho histórico, porque o vivi e acompanhei de perto.
O que queriam os europeus da Beira?
Fazer uma manifestação de protesto contra a «incapacidade» do Exército deter a guerrilha. Para tal, combinaram o encerramento de todos os estabelecimentos comerciais da cidade seguido de um imenso buzinão pelas principais artérias da urbe.
Acontece que a Messe de oficiais do Exército se situava na zona limite da cidade, frente ao mar, na estrada que segue para o aeroporto e para o Dondo. Era um edifício com características de hotel, tendo no piso térreo um amplo salão com uma maior janela para a estrada. Nesse salão funcionava o bar, sendo visível do exterior.
Os manifestantes, ao verificarem que os oficiais e respectivas famílias consumiam livremente bebidas e usufruíam do seu espaço de lazer, imediatamente se concentraram frente à Messe e, em alta voz, exigiam que aquele «estabelecimento» - o bar - fosse encerrado para que se houvesse igualdade com o que acontecia na cidade. Tratava-se de um pretexto, como é evidente, justificativo da manifestação contra o Exército.
Aos poucos, o edifício da Messe foi sendo cercado por europeus que impediam a entrada ou saída de quem o quisesse fazer. Obedecendo a ordens que não se sabe de onde partiam, de quando em vez, ouvia-se o slogan, gritado até à exaustão: «Vão para o mato malandros».
A polícia de segurança pública de recrutamento local - que se distinguia da de reforço metropolitano por usar farda de caqui - ao contrário de dispersar a manifestação montava-lhe segurança em círculo exterior.
Como me encontrava fora do meu batalhão quando os acontecimentos tiveram início, recebi ordem do comandante para ficar na cidade e, à paisana, ir verificar o que se passava informando-o, depois, telefonicamente. Assim, foi me possível recolher as mais variadas impressões e delas dar conhecimento superior. O «cerco» manteve-se por mais de vinte e quatro horas. Pôs-lhe cobro a companhia de Polícia Militar que para tal recebeu ordem directa do Comando Territorial do Centro (CTC).
Dias depois - talvez três ou quatro - foi publicado no jornal Notícias da Beira órgão completamente dominado pelo célebre engenheiro Jorge Jardim - um editorial que, não vindo assinado, se admitiu ser da autoria daquele personagem que tão bem manobrava na sombra e tanta aceitação tinha junto de certos círculos políticos e militares. Era aconselhada calma e pedia-se à população para saber esperar o momento oportuno, que não devia tardar.
Passados que são mais de trinta e três anos cabe a colocação de algumas perguntas e respectivas respostas, embora umas e outras não passem de meras hipóteses que, se calhar, o tempo ou a falta de vontade nunca permitirão esclarecer.
Quem assassinou os casal de fazendeiros, próximo de Vila Pery?
Quem, realmente, esteve por trás da manifestação dos europeus da cidade da Beira?
Quem beneficiava com a manifestação? E com o descrédito do Exército?
Quem preparava o quê?
Vou arriscar respostas que o testemunho vivido, julgo, me permitem.
O infeliz casal de fazendeiros, quase pela certa, não foi vítima da FRELIMO, todavia não descarto a possibilidade de a sua morte ter sido consequência de um acto de banditismo ou, mais maquiavelicamente, uma escolha fria e calculada da PIDE/DGS com vista a obter dividendos políticos que já explicarei, dando resposta à segunda pergunta.
A decisão da greve e da manifestação da população branca da Beira contra o Exército não foi expontânea. Alguém a orquestrou. Alguém que tinha na mira exclusivamente atacar o Exército, deixando incólume a Força Aérea, cuja Messe de Oficiais e Sargentos era precisamente no centro da cidade. Contra essa ninguém se manifestou! Porquê?
Não tenho a verdade escondida para a revelar agora, contudo, juntando alguns dados, talvez seja possível perceber motivos. Em primeiro lugar, a Força Aérea não era facilmente substituível por qualquer outra tropa; depois, era dos pára-quedistas que saía grande número de graduados para treinar os GE’s e os GEP’s; eram fortes as amizades da família Jardim no seio da Força Aérea - principalmente protagonizadas por jovens oficiais e algumas das filhas do engenheiro; foi o general Diogo Neto, antigo comandante da Região Aérea de Moçambique - depois de já ser Chefe do Estado-Maior da Força Aérea, logo no final de Abril ou começo de Maio de 1974, quando se deslocou à Beira, acompanhando o general Costa Gomes - quem deu ordem ao comandante do Batalhão de Caçadores Pára-quedistas 31 para mandar montar uma guarda de segurança no piso do hotel onde passou a residir a família Jardim; por fim, será imaginável que uma manifestação com a dimensão da que mobilizou todos os europeus da segunda cidade de Moçambique passasse despercebida da PIDE/DGS? E passando, que não desse origem à mobilização imediata de meios policiais para lhe pôr cobro, se não fosse do agrado daquela sinistra corporação? Tudo me leva a concluir, como mera hipótese histórica, que existia uma conjugação de interesses: de um lado, estava o engenheiro Jorge Jardim, desejando credibilizar-se como figura preponderante de uma possível e desejável independência de Moçambique - e não devemos esquecer que, na data da ocorrência destes acontecimentos já tinham havido encontros entre ele e representantes da FRELIMO com vista a descortinar uma solução ajustada que pusesse fim ao conflito armado; por outro, face à situação militar quase insustentável em que se encontrava a Guiné e ao avanço da guerrilha no corredor da Beira, convinha à PIDE/DGS encontrar o «bode expiatório» que salvaguardasse politicamente o regime... ou seja, a culpa do descalabro militar não era o resultado da execução de uma má política externa e colonial do Governo central, mas da incapacidade e incompetência do Exército (tinha-se plena consciência de que a falta de meios aéreos capazes não resultava da incompetência do pessoal daquele Ramo das Forças Armadas, mas do isolamento internacional a que o Governo conduzira Portugal; deste modo, a Força Aérea devia ser poupada ao vexame público, conduzindo-a ao papel de Ramo mais conservador!).
Da dedução hipotética anterior, saíram as respostas às pergunta que havia formulado. Passados mais de trinta e três anos sobre os acontecimentos resta aos investigadores históricos «pegarem» em algumas das «pontas» que deixei sugeridas e, na imensidão dos documentos, encontrar as respostas certas, se as houver!
O meu depoimento para a História aqui está, aguardando quem dele seja capaz de se apropriar para fazer luz sobre um dos antecedentes remotos da acção revolucionária e libertadora que foi o 25 de Abril de 1974.