quinta-feira, dezembro 28

A pena de morte

A Saddam Hussein foi reconfirmada a sentença à morte por enforcamento. Motivo? O extermínio de 148 xiitas ordenado por ele. Tão somente isto foi suficiente para o sentenciar à pena capital. E digo, tão somente isto, porque desde a invasão do Iraque por forças norte-americanas e britânicas já morreram milhares de pessoas em resultado das mais diferentes causas, mas todas relacionadas com a ocupação do país. Claro que resisto à tentação primária de perguntar quantos dos responsáveis por todo este morticínio deveriam ser condenados à forca? Não. Não caio nessa tentação, porque fazê-lo era igualar-me a todos quantos aceitam a condenação à morte como forma de punir os grandes criminosos.
Saddam Hussein foi um facínora, um ditador cruel que eliminou fisicamente quem se lhe opunha, que mandou matar gente inocente por pertencer a grupos religiosos diferentes do dele ou a etnias distintas da sua, que governou com mão de ferro. Foi tudo isso, é certo, contudo, sentenciá-lo à morte não traz à vida todos quantos morreram por força da sua vontade e simplesmente denota um sentimento de vingança que iguala os juízes ao réu. Invocam-se razões humanitárias para julgar o ditador e, em seguida, matá-lo.
Ocorre perguntar: - Onde está o sentido humanitário de quem condena à morte um outro ser humano? Em termos absolutos uns e outros não estarão a actuar de forma igual? Ontem era o ditador quem, por razões de Estado, de segurança, de política interna, mandava matar; hoje, em nome da democracia, condena-se o vencido a morrer antes da Natureza lhe pôr cobro à vida. Onde está a lógica? Por mim, só vejo, muito claro, um sentimento de vingança. Uma vingança mesquinha.
E pressinto que alguns dos meus leitores abanam as cabeças ao lerem as linhas anteriores. Abanam em sinal de não aceitação das minhas razões. Para esses a pena de morte deve ser executada quando serve para punir um criminoso, um bárbaro criminoso, mesmo que tenha agido em nome da razão de Estado. Todavia, também sei que de entre muitos que não me compreendem existem acérrimos defensores do direito à vida quando se trata de permitir e liberalizar o aborto. Defendem, com toda a força da sua argumentação, que um feto tem direito a viver, que é um crime acabar com uma vida que ainda não tem registo como cidadão.
Pergunto: - Onde está a coerência? Onde está a coerência de se aceitar a pena de morte aplicável a um criminoso e não aceitar a liberalização do aborto?
Terá, por acaso, o feto consciência de si mesmo? E o criminoso? Será que o Saddam Hussein de hoje é exactamente igual ao mesmo homem que há dez anos mandava matar, sem comiseração, centenas ou milhares de pessoas?
Do mesmo modo que a mulher que faz um aborto pode ficar traumatizada, para toda a vida, pelo peso do remorso, também teremos de admitir que, ao perder o poder e ao ganhar consciência da dimensão dos seus crimes, o assassino passa a viver atormentado pelos seus fantasmas. Depois do aborto e depois da condenação quer a mulher quer o assassino são pessoas diferentes; não são exactamente os mesmos que eram antes da prática dos actos que lhes fizeram nascer o remorso e o sentimento de culpa. E não há tribunal nenhum que consiga pesar e avaliar o remorso, o arrependimento. Assim, também ninguém pode afirmar que a mulher que faz um aborto e o criminoso que é condenado são iguais ao que eram antes, que repetiriam os seus actos se soubessem que poderiam ter de passar pelo mesmo tormento interior.
Dirão alguns: - Há assassinos que são verdadeiros psicopatas! Claro. Também há mulheres para quem o aborto se banalizou de tal forma que não têm qualquer tipo de remorso nem consciência do seu acto. Mas isso justifica tratamentos diferenciados ou semelhantes?
Os psicopatas tratam-se, não se matam, privam-se de liberdade para sempre, afastam-se da sociedade onde não sabem viver.
Saddam Hussein merece a prisão perpétua – tal como a mereciam, provavelmente, noutras circunstâncias, alguns daqueles que o mandaram julgar – contudo, o medo que rói os seus algozes é tanto que preferem vê-lo morto. Morto não ressuscitará; vivo, em cumprimento de pena perpétua, pode um dia ser indultado e ser posto em liberdade. Isso, para quem o manda julgar, é inadmissível. Ora, se o é, a justiça que invocam tem um só nome: vingança. E, estranhamente, ao contrário do assassino e da mulher que mata o feto que transporta, vão dormir repousadamente – tão repousadamente como dormia Saddam Hussein quando dono do Poder mandava matar em nome do bem-estar da sociedade – tal é a consciência que têm de um dever social correctamente cumprido!
Se a vida é dada ao Homem pela Natureza só esta lha pode tirar. Democracias assentes em direitos à pena de morte são aberrações que nos tempos de hoje não podem nem devem ser aceites. Não há crime que a justifique.

domingo, dezembro 17

Pinochet, eu e a censura

Pouco passava do meio da minha comissão militar em Moçambique, corria o ano de 1968, quando vi pela primeira vez o meu nome a encabeçar uma crónica nas páginas de um jornal.
A minha estreia foi feita pela mão exigente, mas bondosa e protectora, do meu Pai. Foi ele quem me iniciou nesta coisa de escrever para os outros e me incentivou no caminho do jornalismo - mesmo que não profissional. Devo-lhe o facto de ter publicado a primeira crónica nas páginas do mais antigo jornal português: o Açoriano Oriental. Crónica ingénua como tudo o que se escreve na juventude e quando se vive animado de ideais grandiosos (que o tempo e a experiência se encarregam de esbater). Contudo, logo no primeiro escrito publicado senti a acção do lápis azul da Comissão de Censura Prévia. Cortaram e retalharam algumas frases e ideias que o chefe de redacção, propositadamente, não compôs para se perceber - e eu também - a descomunal ignorância e insensibilidade dos censores.
Ao contrário do que terá acontecido com muitos estreantes, não desisti; antes pelo contrário, esse acto dos vigilantes da palavra e do pensamento, no Portugal da ditadura, acicataram-me a vontade e o desejo de refinar o jeito de dizer o que queria, passando nas malhas da sua monumental ignorância e ausência de perspicácia dos censores.
Os anos correram. Passei a colaborar regularmente, também, com a Gazeta de Coimbra, que várias vezes me honrou ao atirar para editorial muitas das minhas crónicas. Regressei a Moçambique, pela segunda vez, e lá recebi convite de gente conhecida e ligada à Emissora do Aero-Clube da Beira para com eles colaborar. Colocou-se-me uma questão, que passo a expor.
Escrever para uns jornais de pequena divulgação nacional - quer o Açoriano Oriental quer a Gazeta de Coimbra não chegavam a Lisboa, às bancas de venda pública da imprensa, por se tratarem de folhas regionais que cumpriam o seu importante papel localmente - era, para mim, na época tenente e capitão, pouco relevante, pois não punha em causa a minha estabilidade na vida militar. Contudo, numa pequena cidade como era a Beira, no ano de 1973, onde toda a gente se conhecia, já se tornava problemática uma visibilidade excessivamente pública. Pensei como havia de tornear a situação. Fiz duas opções: em primeiro lugar, escreveria uma crónica por semana sobre política internacional - bastante mais inócua do que os faits divers nacionais; depois, escolheria um pseudónimo. Com esta camuflagem estaria, julgava eu, mais ou menos “encoberto” dos ouvidos dos comandantes das unidades da Força Aérea estacionadas na área da cidade. Acresce que a confiança política nos responsáveis pelos programas radiofónicos era tal – e, em especial, no engenheiro Jorge Jardim verdadeiro “dono” da emissora – que tudo o que se dizia não precisava de ser previamente autorizado pela censura.
Assim, lá comecei, sob a “capa” de Luís de Avelar, a debitar as minhas opiniões sobre o que se passava pelo mundo. A princípio, gravava a crónica, mas mais tarde, depois de ter adquirido prática e de saber como controlar situações inesperadas, passei a fazer a leitura dos meus textos em directo.
Pelos canais que os promotores de programas de rádio tinham, naquela época, para sondar a opinião pública fomos sendo informados da audiência do meu comentário semanal. Havia gente que gostava das minhas intervenções e esperava com ansiedade a quarta-feira, depois das 21 horas, para escutar a minha crónica. Da censura, nem novas nem mandadas! Se ouviam, ou não percebiam ou não encontravam matéria para discordância. No entanto, já assim não aconteceu com o comandante do Batalhão de Caçadores Pára-quedistas – unidade onde estava colocado – pois mandou o oficial de operações inquirir-me quanto ao facto de eu falar na rádio. Não escondi, assumindo a responsabilidade, embora me tenha escudado no uso do pseudónimo inibidor de se relacionar o autor das crónicas com um oficial da Força Aérea. O assunto ficou esquecido, embora soubesse que tanto aquele oficial como o comandante do Batalhão eram meus fiéis ouvintes. Não, por certo, com o desejo de me escutarem, mas para garantirem que eu não era um elemento subversivo infiltrado nas fileiras da unidade.

Quando Augusto Pinochet tomou de assalto o Poder político no Chile, como não podia deixar de ser, fiz o meu comentário centrado na figura de Salvador Allende e no quanto tinha querido trazer os mais desfavorecidos elementos da sociedade chilena para o limiar do bem-estar, através da aplicação de medidas de justiça social.
Dessa vez, face à actuação bárbara e oportunista dos militares, deixei-me levar pela emoção e escrevi sem rebuço o que pensava. Expliquei que se derrubara uma democracia para se implantar uma ditadura, que a humanidade ficara mais pobre por se terem alcandorado ao mando de um Estado militares que não iriam respeitar as liberdades mais essenciais. Enfim, disse o que era esperado calar-se, tanto mais que o fazia na segunda maior cidade de Moçambique, território onde se combatia pela libertação colonial.
Dessa noite em diante os meus textos tiveram de passar a ser previamente censurados. Era o único em toda a Emissora do Aero-Clube da Beira a quem tal se impunha. Confesso que, ao contrário de me moderar, embraveci no teor dos meus comentários. Passei foi a usar de toda a artimanha de que já me socorria em Portugal para ultrapassar o raciocínio rectilíneo dos censores. Disse sempre o que quis, contudo de uma maneira mais encapuzada, onde as pausas, os silêncios e as inflexões de voz dessem aos textos os sentidos que os olhos dos míseros censores não conseguiam vislumbrar.
Como se vê, lá de tão longe, Pinochet também conseguiu que me tentassem calar. Não lograram os esbirros nacionais fazê-lo, pelo menos na medida em que o desejavam.
A Liberdade tem a força da Fénix, renasce das próprias cinzas.