domingo, outubro 30

Um orçamento a sério para uma reforma séria

Há dias foi dado a conhecer aos parlamentares o Orçamento do Estado para o ano de 2006.
Quando olhado de repente, parece tratar-se de um documento que aponta para a consecução de uma certa justiça social. Não me cabe duvidar da intenção do ministro nem do Governo ao procurar reduzir o fosso entre os muito ricos e os muito pobres deste país. Não tenho instrumentos de análise que me permitam fazer o julgamento com isenção. Há, todavia, indicadores que apontam para, mais uma vez, se estar a penalizar a classe média nacional sem que se «castigue» com mão pesada os sectores onde os rendimentos são, realmente maiores e merecedores de pagarem substancialmente mais que os da referida classe.
Para demonstrar o que digo basta pensar nos salários de um agregado familiar em que o marido seja professor catedrático de uma universidade estatal e a mulher, sendo professora do ensino secundário, tenha atingido o escalão máximo de vencimentos. O conjunto dos rendimentos brutos coloca-os na faixa dos indivíduos mais bem pagos do país e, contudo, poderemos, somente, considerá-los dentro da classe média superior. E casos destes são reais e normais.
Na verdade, a elaboração de um orçamento e da respectiva carga fiscal, dependem dos critérios de quem o manda elaborar. Tudo se assemelha à clássica pergunta: - Quanto deve um homem ter depositado no banco, para, se considerar rico?
Responde o drogadito, «arrumador» de carros: - Dois mil euros! Já o empregado que serve à mesa no «café» do bairro, diz: - Vinte mil euros! Perguntado ao professor do ensino secundário, afirma: - Mais de duzentos mil euros! Diz o médico em meio de carreira e bem sucedido profissionalmente: - Dois milhões de euros! Por fim, o grande accionista do banco: - Mais, muito mais, de vinte milhões de euros!
Afinal, ser rico não é um conceito absoluto. Pelo contrário, é absolutamente relativo, porque condicionado pelos padrões de rendimento de quem avalia. Ora, se isto é verdade para o indivíduo isolado, mais certo é para os governantes, pois tenderão a olhar os níveis de riqueza individual pelos parâmetros de capacidade que o país possui de gerar riqueza no seu conjunto. Deste modo, numa terra de fracas possibilidades económicas os responsáveis pela despesa pública ficam incapazes de «atacar» os mais altos rendimentos, talvez por julgar que deles depende a sustentabilidade da economia por via dos seus investimentos, «atacando», por isso, a classe média, esquecendo que é ela quem faz «viver» o mercado, porque alimenta o consumo e este impulsiona a produção no fim da qual estão os grandes investidores desejosos de ampliar os seus rendimentos. Assim, uma mesquinhez de visão pode conduzir os possuidores de grandes capitais a procurarem aplicá-los em mercados onde haja procura efectiva, desviando-os do seu país incapaz de assumir decisões ousadas!
Quando se chegou à situação financeira e económica de Portugal, onde os abismos entre ricos e pobres são profundos e onde a classe média se vê cerceada na capacidade aquisitiva, só existe uma solução que o Governo actual não se mostrou, ainda, capaz de adoptar. Foi aplicada há mais de vinte e cinco anos nos Estados Unidos da América e dá pelo nome de «Orçamento Base Zero» (OBZ). Como tudo o que é eficaz, resulta de uma acção simples. Expliquemo-nos.
O aparelho estatal, em qualquer Estado, sofre de entropia constante, isto é, caminha para situações de descontrole quer pela via do aumento de pessoal em funções, a maior parte das vezes, desnecessárias, quer pelo aparente aumento de trabalho que, quase sempre, não serve a ninguém.
Repare-se neste paradoxo à vista de todos nós. Há quarenta anos a limpeza das instalações estatais eram encargo de funcionários públicos com a categoria genérica de serventes – e o número de funcionários públicos era francamente menor do que actualmente -, agora, são empresas de limpeza que procedem aos trabalhos antes entregues a esses funcionários e o número de empregados do Estado aumentou! Há quarenta anos usavam-se máquinas de calcular manuais, máquinas de escrever, lançamentos contabilísticos e escrituras feitos a tinta e caneta; no presente usam-se baterias de computadores e cresceu o número de funcionários públicos! Isto quer dizer que se perdeu o controlo na máquina estatal, tendo sido ela a apoderar-se dos comandos.
A utilização do sistema OBZ obrigava, antes de se dotar os organismos do Estado com quaisquer valores orçamentais, a fazer uma análise exaustiva de quem faz o quê e para quem, justificando desde a base até ao topo todas as actividades e funções, bem como respectivos funcionários. Este processo, naturalmente complicado na execução, pela carga de radicalismo utilizada, permite identificar as excrescências anómalas dentro dos serviços, rectificando-as por transferência de pessoas, transferência de funções para os organismos certos ou, pura e simplesmente, por afastamento do pessoal e respectivos encargos. A aplicação de um sistema orçamental deste tipo no nosso país ia pôr a descoberto muitas surpresas, donde, enquanto não for convenientemente executado – tal como no passado se faziam purgas ao organismo para o «limpar» de toxinas – não existirão orçamentos sérios nem reformas sérias. Ao contrário de fazer restrições cegas e, quase sempre injustas – por incompletas e assimétricas – um Governo com a confortável estabilidade de uma maioria absoluta tinha todas as possibilidades de «arrumar», em quatro anos, a administração nacional, sem ter de se socorrer de impostos e cortes prejudiciais à economia.
O remédio é fácil, a execução é difícil, mas o resultado era, de certeza, compensador.

domingo, outubro 23

Lições da História

Não me julguem um defensor de desgraças, nem uma daquelas personagens que se comprazem na previsão de catástrofes. Não! Sei que a História não se repete - olhem se voltássemos ao tempo dos dinossauros! -, mas reconheço, como todos quantos procuram andar informados, que parece haver uma tendência para se provocarem semelhanças no natural desenvolvimento da vivência dos homens em sociedade. Não há uma lei de causalidade, mas causas semelhantes provocam efeitos similares. Isto não é rigoroso, mas é tendencial. Os rios não são todos iguais, mas, se os seus leitos se assemelham, se os seus caudais se parecem, o comportamento das águas, que neles se escoam, imitam-se.
A 1.ª República, em Portugal, foi, em simultâneo, um tempo de mudança, de esperança e de desengano - para compreender a afirmação basta colocarmo-nos na perspectiva dos diferentes grupos sociais da época: republicanos, monárquicos, católicos, pequena e média burguesia urbana, proprietários rurais, populações campesinas, operários, estudantes, donas de casa - que desembocou, ao cabo de dezasseis anos, num desencanto generalizado com: (a) a classe política, (b) os partidos políticos, (c) o compradio para se conseguir «um lugar à mesa do orçamento» através da mais (d) inconcebível corrupção política - e não só -, (e) as greves e, finalmente, os (f) patrões. Tudo isto, num (g) ambiente de crise económica - resultado da grande dependência das compras de Portugal ao estrangeiro - e de (h) completo desequilíbrio orçamental (tive o cuidado de identificar cada parcela das causas para ajudar à compreensão dos efeitos).
Em 28 de Maio de 1926, quando o descontentamento era uma força unânime entre os Portugueses e se dizia que o Partido Democrático, por ser maioritário, governava ditatorialmente, impondo-se e impondo a tudo e a todos, os tenentes do Exército, fizeram sair para a rua uma força militar, em Braga, com o fim bem definido de impor uma ditadura militar cuja finalidade era moralizar a vida política nacional. Rapidamente o movimento do Norte foi secundado por Lisboa e, depois, por todo o país.
O Estado Novo não nasceu em 28 de Maio, como os seus mentores quiseram fazer crer aos Portugueses durante quarenta e um anos (1933-1974); o que se efectivou foi uma ditadura militar por declarada incompetência governativa dos políticos da época. Só havia uma instituição na qual os Portugueses ainda acreditavam: a castrense. As alternativas, para além desta, eram já poucas entre as instituições com créditos firmados: ou a Igreja Católica ou a Universidade. A segunda não tinha tradição, nem vocação, para se assenhorear do Poder; a primeira, embora habituada à movimentação nos bastidores do Poder político, havia saído da República bastamente desacreditada por força das influências conservadoras e obscurantistas desenvolvidas nos séculos anteriores.
De 1974 até hoje muita coisa mudou em Portugal, mas, se atentarmos bem nos últimos anos, temos assistido ao abandono da governação - desde a saída de Cavaco Silva para não enfrentar as controvérsias económicas e políticas que se desenhavam no horizonte político de então, até à necessidade de afastamento do Governo Santana Lopes por absoluta inaptidão para gerir os negócios do país - com o consequente descrédito dos (des)governantes. José Sócrates surgiu aos Portugueses como a última tábua onde deitar a mão no naufrágio em que vivemos. E o que aconteceu? Mentiu-se, uma vez mais, não se cumprem promessas, adoptam-se medidas impopulares agindo sobre instituições que deveriam ser poupadas ao desgaste público - a magistratura (já muito mal tratada pela falta de meios humanos e de legislação apropriada para quebrar a burocracia) e os militares (último pilar no qual se sustenta a ordem interna e externa).
Parece-me - e não estou sozinho - que o Eng. José Sócrates se está a enganar nos cálculos do projecto (instrumento de trabalho fundamental a qualquer engenheiro que pretenda firmar os seus créditos na profissão). Em Estratégia - e eu fui, em Janeiro de 1991, o quarto português a obter o grau de mestre nesta matéria - tem-se como básico que a gestão do conflito deve ser dialéctica e na gestão das crises deve ter-se a cautela de deixar aberta uma saída ao oponente, mas, acima de tudo, é importantíssimo saber fazer um cuidadoso estudo da situação avaliando com correcção e perspicaz ponderação as vulnerabilidades próprias e as de quem se opõe de modo a calcular os pontos fortes e a sua localização, seja geográfica ou temporal. Terá o Governo bons estrategistas ao seu serviço?

sábado, outubro 22

Ao cuidado das autoridades sanitárias portuguesas

Segundo as notícias vindas a público ontem e, especialmente, hoje, provavelmente enganei-me.
O Governo começou a tomar as medidas convenientes e tem dado informação capaz sobre a gripe das aves. Melhor assim! Quem ganha são os Portugueses.
Sem pretender tornar-me verrinoso, resta saber se os órgãos que dizem estar preparados para enfrentar uma situação de crise o estão realmente. Até nos cruzeiros turísticos, nos grandes paquetes, parecendo inafundáveis, pelo menos uma vez, em cada viagem faz-se uma simulação de desembarque por naufrágio iminente!
Não seria altura de, nas televisões, se mostrar como funciona o sistema idealizado pelas nossas autoridades sanitárias para nos tranquilizar a todos? Várias simulações que testem as vulnerabilidades e que nos deixem seguros de não vir a ser vítimas dos improvisos nacionais.
Qual náufrago em ilha deserta, aqui lanço ao mar a garrafa bem fechada com o pedido de socorro às autoridades sanitárias nacionais. Alguém a recolherá a tempo?

segunda-feira, outubro 17

Ainda a gripe das aves

No Correio da Manhã de hoje lá está, bem à vista de todos, o cálculo de 11.000 a 13.000 o número de pessoas prováveis a serem vítimas da gripe das aves em Portugal.
Ora, todos nós sabemos que compete às autoridades não serem alarmistas, por isso, para termos um valor mais correcto deveremos utilizar um factor de multiplicação igual a dois. Deste modo, a realidade poderá rondar os 22.000 a 26.000 casos mortais no nosso país. Isso constitui um flagelo!
O Governo, tão pronto em dar conta das medidas adoptadas que lhe possam granjear a simpatia dos Portugueses, neste caso mantém-se caladinho e não nos dá cavaco (não que esse pode ter conotações com o outro!) sobre as decisões tomadas (se é que tomou algumas!).
Já existem nos nossos aeroportos internacionais locais apropriados para uma quarentena imediata dos possíveis contagiados? Já estão a ser nomeadas, instruídas e equipadas as equipas sanitárias que deverão ser destacadas para os aeroportos? Já se estudou o local onde devem ficar fundeados os navios com casos suspeitos? Já estão definidos os lazaretos a adoptar para não contaminar os hospitais comuns? Já se inventariaram os profissionais de saúde a mobilizar no caso de uma epidemia alargada?
Repare-se como Le Figaro de hoje já dá informação sobre o que, ao nível dos organismos responsáveis da União, se vai fazer: «Le commissaire européen à la Santé, Markos Kyprianou, doit de son côté présenter mercredi un exercice de simulation, organisé plus tard dans l'année et visant à tester la capacité de l'UE à répondre à une pandémie de grippe.» Por seu turno o Le Monde publica, em destaque a seguinte afirmação, da autoria do professor Didier Houssin, delegado inter-ministerial encarregado da luta contra a gripe da aves: «la France doit se préparer "comme si la pandémie était pour demain"».
E por cá, como vai ser?
Se entre nós não se sabe como conduzir as operações, passem a um comando militar a responsabilidade de organizar as medidas a adoptar já que, habituados a tomar decisões em estados catastróficos, eles, se lhes forem dados os poderes necessários, saberão como, quando, onde e o que fazer.
Se ficarmos à espera dos peritos governamentais julgo que seremos apanhados em meio da crise sem nenhuma decisão de jeito devidamente adoptada.
Para os mais curiosos, aqui fica o endereço da notícia: http://www.correiodamanha.pt/noticia.asp?id=178017&idselect=9&idCanal=9&p=94

sábado, outubro 15

A gripe das aves

Diz-se que vão morrer pessoas. Circulam notícias sobre a detecção de aves (em especial patos) infectadas quer na Roménia quer na Turquia. Na Europa, os responsáveis pela saúde pública tomam medidas e desdobram-se em entrevistas sobre o assunto. Ouve falar-se deste e daquele medicamento que pode ser uma solução e, depois, já não é. Os laboratórios, por todo o mundo, fazem esforços para identificar a forma de combater o vírus. Há, realmente, um alerta geral e um geral pedido para não se gerar o pânico. Recorda-se, nos jornais, o que foi, em 1918, a chamada gripe espanhola que matou, sem recurso, famílias.
Em Portugal, depois das eleições, continua a reinar a maior calma olímpica de sempre. Gastaram-se milhares, milhões, a fazer propaganda a este e àquele candidato, a imprimir folhetos para distribuir porta a porta convidando-nos a escolher um em desfavor de outro e não se gastam uns cêntimos a imprimir uma folha volante para entregar nas ruas, nas escolas, nos centros comerciais, nas aldeias, nas juntas de freguesia, nos lugarejos isolados, nos pequenos estabelecimentos perdidos nos montes e nas planuras, nos barbeiros, nos bancos, que seja lida até ao vómito nas rádios, nas televisões, explicando como se deve evitar o contágio, como se identificam os primeiros sintomas, que número de telefone se pode ligar para obter as primeiras indicações, quais os cuidados a ter, a higiene apropriada, os primeiros medicamentos a tomar, os alimentos a não comer.
Não se faz absolutamente nada!
Dá-se tempo de antena televisiva a um autarca que, por ter ganho as eleições lá na sua santa terrinha, vai a pé, com os jovens do lugar, a Fátima, agradecer à Virgem! Deuses, em que país estamos nós! Em que século vivemos!?
O poder político está mais preocupado com o orçamento do que com a saúde e o bem-estar públicos. Será que, por uma qualquer crença no Mafarrico, os senhores de S. Bento estão convencidos que a gripe das aves vai resolver o problema do deficit orçamental e dos sistemas de pensão, matando os velhos e os desnecessários na função pública, eventualmente, até, os desempregados? Será? Naturalmente que não posso acreditar e só o digo com uma ponta de ironia amarga, corrosiva, provocatória. Mas, não tenho dúvidas e não sou irónico, quando aceito que se está a admitir a possibilidade de usar a grande solução nacional: o improviso!
A tempo, tomem-se medidas, divulguem-se cuidados, assuma-se uma atitude responsável perante a catástrofe anunciada. É o mínimo que podemos e devemos exigir dos poderes públicos. Digam-nos o que fazer e não fazer... Não fazer nada é que não pode ser! Ou será que deve ser?

sexta-feira, outubro 14

Da minha janela via o Mundo



Não sei qual o motivo, mas talvez por causa desta maldita constipação de nariz, na noite de hoje, dormi menos horas que nas anteriores.
Levantei-me um pouco antes das seis da manhã, depois de quatro de bom repouso.
Acordei sob o efeito de um sonho maravilhoso. Estava a passear na minha rua, a rua onde se situa o prédio onde nasci. Porque eu nasci em casa.
Recordo-a sempre como um rio que corre ao contrário, dos Anjos para a Graça, para o largo dos Sapadores, no começo da Penha de França. É a rua Angelina Vidal. Curioso que, entre nós, se cultiva o hábito, inculto, de não averiguar quem foi a personagem que dá nome à artéria onde vivemos. Coisa de gente sem prontidão para o trabalho de saber! Pois bem, Angelina Vidal foi poetisa, ficcionista, dramaturga e jornalista republicana nascida na segunda metade do século XIX e falecida, depois de anos de luta pelos direitos políticos e de cidadania da mulher, em 1917.
Hoje, a minha rua, é feia; encanada entre edifícios do começo do século xx, de um lado, e «modernos» apartamentos dos anos 50, do outro. Quando era pequenito, onde agora estão as casas «modernas», havia duas moradias térreas, uma oficina de trabalho metalomecânico e uma quinta de pinheiros altos que descia em rápido declive para a rua Damasceno Monteiro. Depois, por cima desta paisagem próxima, estendia-se o olhar até quase alcançar o rio, abarcando-se mais de um terço da velha Lisboa. Lá longe, na linha do horizonte, ainda se vislumbrava a cúpula da basílica da Estrela, mais perto, a meia distância, o edifício do Instituto de Medicina Legal e uma parte do Hospital de S. José; um pouco para a direita, o casario da antiga Escola de Guerra e o hipódromo onde os cadetes, montando cavalos, saltavam obstáculos (como essa visão terá sido, também, determinante para o meu futuro!); tendo já de me debruçar da janela, viam-se as árvores do Parque Eduardo VII; ali, à mão de semear, o Martin Moniz, a avenida Almirante Reis, o começo da «Baixa», fervilhando de gente. Essa era a cidade que me habituei a ver, mas a vida e o mundo estavam mesmo debaixo dos meus olhos, na minha rua.
Logo em frente da porta do prédio onde pela primeira vez chorei trabalhava-se do nascer do dia quase ao anoitecer, ligando barras de ferro (como é bonita a chuva de efémeras estrelas que saltam da soldadura eléctrica! Morrem antes de chegar ao chão, sem deixarem rasto...), martelando, torcendo metais; os sons cadenciados chegavam ao segundo andar ainda palpitantes... O trânsito era pouco; a rua, vivia os sons de dentro não se deixando encantar com os que velozmente por ela deslizavam. De manhã, por esta hora a que escrevo, ouvia-se a voz sonora da mulher da fava rica. Depois, mais tarde, era todo o desfilar de pregões das vendedeiras de fruta (de, no seu tempo, os «figos de capa rôta»), de hortaliça (alface fresquinha), do peixe «do alto» (a pescada e o carapau). À tarde eram só frequentes as peixeiras com as canastras à cabeça, batendo o salto da chinela no empedrado da rua, quando bamboleavam os quadris em jeito de onda sensual; os longos peixes-espada cinzentos dependurados a enfeitar-lhes as canastras enquanto, ao meio, sobressaíam os cachuchos rosados de mistura com amêijoas, berbigões, sardinhas, chicharros e besugos já moles de muito mexidos. Às vezes, anunciando a chuva para o dia seguinte, lá vinha o amolador, soprando de modo especial uma gaita que soltava sons de paradoxal melodia e estridência. Sem dias nem horas certas, passava o ferro-velho, enquanto o limpa-chaminés, enfarruscado, vasculho na mão e cordas ao ombro, oferecia os seus serviços de manhã. O fim da tarde era o tempo da camioneta que fazia a distribuição dos cântaros de água de Caneças tapados com uma rolha de cortiça embrulhada num papel verde-alface. De tempos a tempos, ronceiro na ascensão e veloz na descida, vinha o carro «eléctrico» que, ao subir, tinha paragem mesmo em frente da porta do prédio donde observava o mundo. Saía gente e raramente alguém entrava (não valia a pena pagar bilhete para chegar ao largo da Graça! Tempos difíceis!).
Um pouco mais a baixo e um pouco mais acima da oficina, as duas vivendas eram habitadas por oficiais do Exército e suas famílias (mais outro apelo a seguir a carreira castrense): o Sr. Engenheiro (coronel daquela Arma) e o Sr. Major. Lá no prédio já sobranceiro às escadinhas, na curva, vivia um outro... Chegou a general e malogradamente morreu em Angola num acidente de aviação que ceifou todos quantos o acompanhavam: chamava-se Silva Freire (dou comigo a pensar neste momento: - Com tantos oficiais na minha «frente», será que funcionaram como uma espécie de espelho para o meu futuro? Ter-me-ei deixado impressionar com o aparato das fardas ou prevaleceram a educação nos Pupilos do Exército e a influência familiar?).
Ao ver todos quantos calcorreavam a minha rua, sem infantário para onde ir, foi, olhando-os, com a testa encostada à vidraça, que aprendi, pela mera observação, a crueldade das diferenças sociais, a brutalidade dos sistemas repressivos. Na maior parte das vezes, a aprendizagem era lenta e inconsciente, mas, momentos houve, em que a marca se fez como quem, pelo ferro em brasa, garante a posse do animal.
Hoje, a grande janela dos meninos para o mundo tem um nome novo! Chama-se televisão. Deixa-os ver o que outros programam. O sonho e a fantasia, a realidade, a alegria e a tristeza são fornecidos a conta-gotas como quem dá remédios ou venenos. Mas a vidraça é tão grossa que o real ganha tons de brincadeira, por isso a violência pode ser disponibilizada sob todas as formas e em todos os momentos. Comigo foi doutro modo. Eu conto.
Comecei por me aperceber do trabalho, fosse mecânico, braçal, intelectual, comercial ou de qualquer outro tipo. Na minha televisão os actores eram reais. Se para eles fazia sol e calor, para mim também; o frio chegava ao mesmo tempo à rua e à minha janela, tal como a chuva e o vento. Estávamos todos de pé; eles, porque na rua, eu, porque no banquito que me dava tamanho para alcançar o parapeito.
A primeira experiência com a mão pesada da repressão foi vivida à minha janela. Caso curioso, sobre quem queria ganhar a vida fugindo aos impostos!
Realmente, mais ao fim da tarde que de manhã, lá vinham, quase todos os dias, do lado de Sapadores os polícias cívicos perseguir as vendedeiras as quais, não olhando a prejuízos, fugiam rua abaixo, deixando cair o que das cestas ou canastras estava mal seguro; por vezes, até um chinelo ficava para trás. De todos os «cívicos» um, à paisana, aterrorizava-as mais do que qualquer outro: o «seis dedos»! Era expressão que soava com a rapidez do relâmpago: - Vem aí o «seis dedos». Antes perder parte da mercadoria que ir para a esquadra do «seis dedos»! Era uma repressão que me incomodava. Não compreendia como tão poucos podiam assustar tantos!
O mais brutal encontro com a repressão, com a violência gratuita, injustificada foi no fim de tarde de 8 de Maio de 1945 (a data soube-a mais tarde, como é evidente!).
Espontaneamente, vinda não sei de onde, começaram a descer a minha rua duas ou três dezenas de pessoas, talvez mais. À frente, um homem com uma bandeira de Portugal presa num pau. Pareceu-me grande a bandeira, muito grande. Lá em cima, na curva, junto às escadinhas, estava parada uma camioneta da PSP. Daquelas que não tinham portas, de bancos corridos como certos carros «eléctricos». De lá saltaram os «cívicos» de cassetete em punho e vá de dispersar, à pancada, todos quantos davam largas à satisfação de a Alemanha se ter rendido. Quem mais apanhou foi o homem da bandeira. Eu já sabia (fora o meu Avô quem me ensinara) que aquele pano verde e vermelho com umas coisas no meio era a bandeira de Portugal (os homens paravam, punham-se direitos, tiravam o chapéu quando a tropa passava com a bandeira à frente ou, quando ao pôr-do-sol, à porta dos quartéis, ela descia do mastro grande ao som de cornetas). A bandeira era Portugal; a República Portuguesa.
Nessa tarde de Maio, na insegurança dos meus quatro anos ainda há pouco completados, rebentava-me no peito a fúria da injustiça a que assistia da janela da casa que me viu nascer. Segurava-me a minha Mãe, não fosse baldar do banquito de onde via o mundo.
Como poderia a polícia bater em quem levantava tão alto a bandeira tão grande de Portugal? Ele, esse herói desconhecido da minha meninice, quanto mais era sovado mais erguia a mão onde segurava o símbolo que muitos respeitavam. Caiu no empedrado do passeio, junto à porta da oficina de metalomecânica, mesmo em frente da minha janela, quando, cercado de «cívicos», lhe batiam na cabeça, no tronco e lhe davam pontapés. Inconsciente, arrastaram-no para a camioneta sinistramente parada lá em cima na curva, junto às escadinhas. A bandeira, essa ficou no chão, espezinhada e rasgada.
Ainda hoje sinto a revolta daquele momento, a onda que me sufoca, a raiva que me dói. Afinal, a bandeira, a grande bandeira que um herói desconhecido levantava bem alto em sinal de alegria por se terem rendido os tiranos, continua rasgada, mais espezinhada, quase esfarrapada, caída no passeio em frente da minha janela, onde já não há oficina de metalomecânica, mas uma loja de ocasião num prédio «moderno», dos anos 50 do século passado. Uma só vez, depois do fim de tarde desse longínquo Maio, ela se ergueu, restaurada, remoçada, drapejando alegremente ao sol de uma nova aurora. Uma só vez! Faltava pouco para fazer vinte e nove anos que ali estava, aos olhos de todos sem que ninguém a visse... Foi na madrugada de 25 de Abril de 1974. Eu já era oficial. Fardava como os outros da minha infância, mas sonhava um Portugal onde jamais alguém batesse no Homem da bandeira! Um Portugal justo, alegre, feliz, sem miséria e com trabalho para todos.
Quem foi que de novo derrubou, no empedrado do passeio, em frente da minha janela, a bandeira, a grande bandeira de Portugal? Quem matou, nos matou a esperança daquela madrugada? De que curva das ruas da vida e do mundo saíram estes cívicos que destroçaram os nossos sonhos? Que nos estão arrastando exangues, quase inconscientes, para um qualquer calabouço?
Desliguem as televisões, silenciem os rádios, tirem as letras aos jornais, mas deixem-nos sonhar com a Liberdade. Deixem as crianças do meu país crescer na esperança desintoxicada de terem uma janela para verem o mundo ser feliz. Deixem...

quarta-feira, outubro 5

Os partidos políticos em Portugal e as ideologias

Nos anos que se seguiram a 1974 foi grande a discussão sobre as ideologias políticas prosseguidas ou defendidas pelos partidos da altura. Imagine-se que Diogo Freitas do Amaral, então figura de proa do CDS, chegou a dizer na televisão, que o seu agrupamento político defendia um socialismo cristão, prevendo o fim da pobreza no país. O caso mais confuso foi o do PPD quando o PS afirmou, pela boca de Mário Soares, que «guardava na gaveta o socialismo marxista», porque, então, passaram a coexistir dois partidos social-democratas ou que diziam defender a social-democracia. E a discussão subiu de tom quando o PS inviabilizou a filiação do PPD na Internacional Socialista. Foram tempos inesquecíveis para quem os viveu com atenção e intensidade, acima de tudo pela riqueza de sonho e crença na mudança.
Tudo se alterou após a adesão à Comunidade Económica Europeia. A discussão ideológica deixou de ter sentido. Imperou a «subsídiocracia» ou seja, a caça aos dinheiros da Europa. Sabia-se que, mais tarde ou mais cedo, o largo sector da economia nacionalizada iria ser entregue à gestão privada - porque a intervenção do Estado em parte maior na economia alterava as regras da livre concorrência - e que, mais dia menos dia, os capitais nacionais e internacionais acabariam por dominar, novamente, impondo as regras do mercado, subvertendo, de uma vez por todas, o Estado-providência que a crise de 1929, nos EUA, havia feito desabrochar e que tão excelentes resultados tinha dado na Europa e um pouco por todo o mundo. Mas esta certeza estava ainda envolta numa névoa espessa nos anos 80 do século passado. Pairava nas teorias do Senhor Fryedman e nas arremetidas práticas de Ronald Reagan e Margaret Teatcher, mas eram prontamente combatidas por todos os keynesianistas convictos... o Estado jamais claudicaria perante a livre concorrência, diziam.
No começo dos anos 90 deu-se como que a implosão do sistema de economia planificada praticada na União Soviética e nos restantes países onde estava implantada, excluindo Cuba e a China; o muro de Berlim caiu; o comunismo desapareceu. Ruía uma doutrina política pela qual milhões de cidadãos do mundo haviam sofrido a tortura e a morte. Os partidos comunistas perderam o seu «padrão de referência». Como seria, doravante o comunismo na prática? Não se sabia e continua a não se saber, porque, igual ao que foi na URSS, nunca mais vai tornar a ser! Semelhante ao da China Popular também não!
Se a adesão à CEE havia retirado sentido à discussão ideológica na política portuguesa, a implosão do comunismo completou esse vazio
Olhe-se hoje, com atenção, para os partidos políticos portugueses - o que são eles, efectivamente, do ponto de vista da ideologia?
O Bloco de Esquerda é o que o próprio nome diz: um «bloco». Dito de outro modo, uma junção de intenções que pretendem plasmar a esquerda que se não identifica com o Partido Comunista nem com o Partido Socialista. Não é um projecto; é um contra-projecto. Se, por um passe de magia, alcançasse o Poder, rapidamente o veríamos decompor-se nas suas diferentes sensibilidades, nos seus diferentes modos de entender o socialismo e a sociedade socialista.
O Partido Comunista, ideologicamente é o «esqueleto» do marxismo-leninismo; resta-lhe, como elemento aglutinador, o marxismo o qual terá de ser «reinventado», «reimaginado», para ser concebido como rumo revolucionário de uma sociedade justa dentro da modernidade de um mundo de países ricos e de países paupérrimos. Que tipo de sociedade justa será essa? Um marxismo para um Estado de cada vez e à medida das suas possibilidades ou um marxismo global e, por conseguinte, à escala mundial, à semelhança do capitalismo da globalização? Ora, não cabendo nenhum destes papéis ao PCP, o único que pode continuar a desempenhar, com alguma coerência, é o de se limitar a desenvolver oposição ao capitalismo neo-liberal que avassala a economia portuguesa. O acesso ao Poder está-lhe negado se não se quiser negar como partido defensor dos trabalhadores e dos deserdados.
O Partido Socialista debate-se na mais pura incoerência de todos os tempos. Com efeito, para cumprir um programa que o coloque na senda da ideologia social-democrata, tem de se demarcar do tipo de desenvolvimento neo-liberal que se está a impor na União Europeia e no mundo. Ora, essa é uma luta perdida desde o início; assim, tem de alinhar com a orientação do grande capital nacional e internacional, deixando de se poder intitular socialista ou mesmo social-democrata. As últimas medidas adoptadas pelo Governo José Sócrates traduzem a incoerência política ao mesmo tempo que o descair para as soluções que satisfazem aos interesses capitalistas instalados.
O PPD/PSD é um partido que, desde há muito, embora se afirme social-democrata, se afastou, na prática, da política de defesa social para enveredar pela aproximação ao modelo neo-liberal «atenuado» pouco se diferençando da actuação do PS. Contudo, enquanto no passado recente durou o entendimento com o CDS, foi notável a viragem à direita através da adopção de políticas que privilegiavam o capital em desfavor do trabalho.
Finalmente, o CDS/PP é, sem sombra de dúvida o partido onde se acoitam todos os que entendem que só políticas favoráveis ao capital e à direita mais radical se apresentam como solução para o país. Em última análise, este é o agrupamento partidário português que mais e melhor se identifica com uma doutrina política claramente definida.
Em face deste quadro, ou os partidos políticos do centro e da esquerda repensam as doutrinas onde devem ancorar as suas posições práticas para que a sua actuação possa ser coerente e identificável pelo eleitorado ou o pseudo pragmatismo em que vivem arrastará as soluções económicas e sociais para os braços do capitalismo revivalista e desumano cujos contornos se definem nalguns países do mundo e da Europa.
Será esse o caminho que os Portugueses desejam trilhar?

sábado, outubro 1

O medo do sigilo bancário

De novo voltou às páginas da imprensa portuguesa o problema do sigilo bancário. Isso leva a perguntar-me: - quem tem medo que se quebre o segredo bancário?
Provavelmente, em primeiro lugar, os próprios bancos. Realmente, para quê investigar a procedência daquilo que lhes dá lucro? Era como se um armazenista de maçãs, que sabe irem vender-se todas as que lhe dão a guardar, denunciasse os produtores de lhe entregarem grandes quantidades podres! Só uma elevadíssima noção de serviço público, responsabilidade política e civismo o levaria a actuar de vontade própria. O egoísmo e a ganância do lucro fácil fá-lo calar-se. Para se conseguir o contrário só uma apertada fiscalização seria garante da sanidade dos produtos. Se quem detém a autoridade para fiscalizar não manda fazê-lo está a ser conivente com a ganância do armazenista.
Em segundo lugar, não estão, evidentemente interessados na quebra do sigilo bancário todos os depositantes que têm de explicar a proveniência de dinheiros cuja origem não é lícita, ou seja, no exemplo anterior, quem produz maçãs de baixa qualidade e não se importa com a segurança e o bem-estar da sociedade. Aqui prevalece a ganância e o egoísmo do produtor. Mas, nestas circunstâncias, uma vez mais, o detentor da autoridade é conivente, por omissão, com o infractor social.
Finalmente, opõem-se à medida, os honestos cidadãos crentes no seu legítimo direito à privacidade e, assim, defendem-na intransigentemente, mesmo que, deste modo, estejam a possibilitar actividades ilícitas e condenáveis. O seu soberano egoísmo impossibilita-os de apoiarem todos quantos podem e conseguem exigir do Governo a adopção das medidas correctivas para evitar negócios e lucros condenáveis.
Posto o problema em equação deixem-me olhá-lo e conduzir-vos, a vós, meus leitores, para caminhos onde a imaginação descobre soluções agradáveis a todos. De certeza não as vou inventar... Inspiro-me noutras que sei existirem em países bem próximo de nós. Vamos, então, ensaiar o que me proponho.
O sigilo bancário é um mito. Um mito como qualquer segredo que esteja na posse de mais de duas pessoas! Repare o leitor que o seu melhor amigo pode trabalhar no banco onde deposita o pecúlio que constitui património pessoal e por onde correm todas as transacções que efectua (quem diz amigo, também diz inimigo); ele poderá ter – e tem – acesso às suas operações bancárias, ao seu dossier; ele vai saber o que o leitor julga bem guardado. Na conversa de «café», no serão em sua casa, no jantar de família, pode contar-lhe as maiores aldrabices para justificar a sua vida financeira e económica que ele, só por discrição e profissionalismo, não se lhe ri na cara e não lhe põe, como o Povo diz, a careca à mostra. Também não o faz para garantir o emprego, contudo, na verdade, para ele, o meu leitor, não tem segredos... Nem para ele nem para nenhum dos funcionários do banco. O segredo repousa, afinal, na confiança que todos nós podemos depositar nos empregados bancários.
Esclarecido este aspecto, poderemos olhar o problema do sigilo bancário de uma outra forma.
Na vida comercial interessa a quem vende saber se quem compra pode, efectivamente pagar (qual será o interesse de vender um bem de valor avultado para, passados poucos meses, estar a mover uma acção judicial de penhora?), tal como ao Estado, para verificação de fuga a responsabilidades fiscais, interessará simplesmente conhecer a posição financeira do suspeito ou seus familiares, sem ter de entrar em pormenores.
Pensando numa solução francesa o sigilo bancário seria facilmente ultrapassável recorrendo a um código de cores a que a banca teria de aderir.
Assim, no caso do vendedor estar interessado em saber se o comprador tem fundos financeiros suficientes para pagar ou dar garantias numa operação significativa bastava informar-se de qual a «cor» do hipotético comprador. Verde correspondia ao depositante com uma vida financeira desafogada, sem problemas anteriores de créditos mal parados; amarelo indicava um cliente com fracos recursos financeiros e/ou situações anteriores de crédito problemáticas; vermelho era a indicação de falta de fundos ou de património financeiro incapaz de suportar uma operação de crédito ou/e, também, de cliente com um currículo financeiro indesejável.
Quantas acções judiciais deixavam de entrar em tribunal por ano? Mas se acaso, depois de receber um aviso amarelo ou vermelho o vendedor quisesse prosseguir no fecho da transacção isso impedi-lo-ia de apresentar queixas futuras. O prejuízo seria suportado por quem tinha induzido um mau comprador/pagador a comprar e pagar. Claro que para o sistema funcionar o vendedor teria de indicar ao banco o montante da venda e do crédito necessário... Mas esse dado não me parece carente de salvaguarda sigilosa.
Na hipótese de serem os responsáveis pelas cobranças fiscais a pretenderem saber a situação financeira de um suposto fugitivo às obrigações fiscais bastava, junto de toda a banca nacional informar-se de qual a «cor» do presumível infractor, indicando valores limites de patrimónios financeiros. Assim, no caso de serem superiores a K milhares/milhões de euros a cor seria branca; entre K e Y (sendo este menor que aquele) a cor seria laranja; e, por fim sendo menor que Y (desde que correspondente a um montante incompatível com a declaração de rendimentos ou dos sinais exteriores de posse de bens) a cor poderia ser castanha.
Seguindo um processo desta natureza, o mitológico segredo bancário estava salvaguardado e a actividade fiscalizadora do Estado podia efectuar-se com bases seguras, para além de se reduzirem os riscos de maus negócios, de créditos mal parados e de substanciais aumentos de processos judiciais a atafulhar os tribunais.
Assim o colectivo, o social, o comunitário impunha-se ao egoísmo que campeia entre nós e é apanágio das sociedades deformadamente nascidas do demo-liberalismo do século xix e incentivadas pelo neo-liberalismo do século xxi.
Oxalá, a imaginação, a saudável imaginação, fosse apanágio do Governo Sócrates, tão aparentemente desejoso de corrigir os desvarios orçamentais e as imoralidades. Contudo, não me parece que a imaginação seja o «prato forte» dos senhores ministros, pois servem-nos mais do mesmo e, ainda por cima, requentado.