terça-feira, maio 30

O meu exercício da docência

Era cadete finalista da Academia Militar, no já distante ano lectivo de 1964/65, quando comecei a dar explicações de Matemática e aulas de História e Geografia em «Salas de Estudo» - como então se chamavam a centros onde se completava o conhecimento da frequência dos liceus. Desde então para cá, foram raros os anos lectivos em que não desenvolvi actividade docente.
No começo da década de 70 estreei-me a dar aulas em colégios particulares e, dez anos mais tarde, passei a leccionar no ensino superior militar, primeiro no Instituto de Altos Estudos da Força Aérea (IAEFA) e, depois, na Academia da Força Aérea. No início da década de 90 (1992) fiz a minha estreia como professor do ensino universitário civil. Há catorze anos que por lá me mantenho, fiel à Universidade Autónoma de Lisboa (UAL).
Ao olhar para trás, sinto-me satisfeito pelo trabalho desenvolvido. Acredito que a docência é uma missão e não uma profissão. Sempre achei que mais importante do que levar um aluno a saber uma qualquer matéria é conseguir despertar-lhe dois sentimentos simultâneos: o gosto pelo conhecimento e o prazer de saber. Bom professor é aquele que faz do seu aluno um verdadeiro estudante, um Homem voltado para o exterior, capaz de estar preparado para o acto simples de aprender.
Certamente não consegui que todos os meus alunos assumissem esta postura - talvez por culpa minha - contudo, sinto-me satisfeito comigo, porque algumas das muitas sementes lançadas à terra fortificaram e medraram.
Ao longo de tantas décadas, já ensinei milhares de alunos. De muitos ficou-me a lembrança individual em consequência de, por qualquer motivo, me recordar da pessoa. As razões podem ter sido boas ou muito más! Contudo, de cursos, ou seja de todo um conjunto de alunos, recordo muito poucos: um, do já extinto Externato de Santa Bárbara, outro do primeiro ano que leccionei na Academia da Força Aérea (1985/86) e outro bem recente, na UAL. Reporto-me aos alunos entrados em 2002 para o 1.º ano da licenciatura em Relações Internacionais. Dei-lhes aulas logo mal chegaram à Universidade e, depois, no 3.º ano. Quase todos estão agora a concluir a sua formação. A eles vou dedicar o apontamento de hoje.
É sempre tormentoso dar aulas aos alunos do primeiro ano da Universidade, porque, como regra, apresentam-se ainda com os hábitos e comportamentos próprios do ensino secundário: a irrequietude, as interrupções para dizer coisas a despropósito, as perguntas não pensadas, a incapacidade de aguentar 90 minutos de aula sem se dispersarem, enfim, toda a panóplia de atitudes contrárias à forma de alguém se comportar numa Universidade. Os novos comportamentos têm de lhes ser ensinados através de uma conduta que não deixe dúvidas aos caloiros. Melhor ou pior lá vão aprendendo a comportar-se de modo que, ao chegarem ao 3.º ano, são pessoas diferentes.
Em Outubro de 2002 ingressou na UAL, destinado ao curso de Relações Internacionais, um grupo de alunos bastante heterogéneo: elevado número de Africanos, alguns Brasileiros e bastantes Portugueses caucasianos. Os Africanos vinham, maioritariamente de Angola, embora os houvesse de S. Tomé, de Cabo Verde e da Guiné-Bissau.
Irrequietos e irreverentes, com todas as características inerentes a tantos outros caloiros que já me passaram pelas mãos, havia no grupo algo de diferente: uma irreverência não desrespeitosa acompanhada de uma imensa vontade de serem capazes de gerar uma coesão verdadeira; independentemente das suas diferentes origens queriam ser amigos, queriam esbater o que os separava para manter junto o que os juntava.
Depois de os deixar no primeiro ano, soube que, no segundo, tinha havido desistências. O grupo reduziu-se, mas ficou mais coeso. Começaram a destacar-se três líderes que, ao contrário de disputarem a chefia, complementavam-se: um São-tomense, um Português e um Brasileiro. Eram os mais disponíveis para todos os restantes. Souberam desenvolver um sentimento de anti-concorrência; a cooperação passou a ser a sua palavra de ordem; o grupo era mais importante do que as partes que o constituíam. Assim os «apanhei» no 3.º ano.
Naturalmente, houve alunos fracos e alunos bons, mas todos se mostraram desejosos de ultrapassar as dificuldades que, propositadamente, lhes criava para se superarem. A simpatia fluiu, tornando as lições mais agradáveis.
Julgo ter sido capaz de deixar amizades entre aqueles alunos, agora já finalistas. Parece-me que os marquei.
Pela primeira vez, em tantos anos de ensino, sinto que cumpri integralmente a minha missão.
É com um misto de tristeza e alegria que os vejo partir. Vão para as suas terras, para os seus destinos; seguem rumo ao Futuro, mas ficarão na minha lembrança e no meu coração, todos em conjunto e cada um em particular e por razões diferentes.
Será, de certeza, com muita alegria que receberei notícias deste grupo e peço Àquele que rege o Universo a possibilidade de terem os caminhos da Vida aplanados e fáceis de modo a vencerem sem perderem de vista que a melhor vitória não é a individual, mas a do grupo.

terça-feira, maio 9

O primeiro rei de Portugal

Há uma pergunta que me assalta quando medito sobre a origem histórica e, consequentemente, política do nosso país:
— Nos recuados anos de 1140 (mais coisa, menos coisa) será que os camponeses do Alto Minho tinham consciência de serem portugueses (ou portucalenses) e desejo de serem independentes do reino de Leão?
Imagino que o meu leitor já esboçou um sorriso e pensa com os seus botões: — Este está louco ou para lá caminha! Então querem lá ver um pobre camponês do século XII preocupado com ser isto ou aquilo! Ele queria era não morrer de fome e ter no final das colheitas o suficiente para pagar ao seu senhor os impostos que lhe lançava em cima dos ombros!
Se o leitor pensou assim, pensou muito bem, porque concordo consigo.
Realmente a minha pergunta é mais retórica do que outra coisa qualquer. Mas tem o seu fundamento.
Abra o leitor um compêndio de História de Portugal e verá que todos, ou quase, os historiadores se referem a D. Afonso Henriques como o «fundador da nacionalidade». Ora, no mais estreito rigor histórico, o nosso primeiro rei o que fundou foi um Estado, porque o conceito de Nação obriga a que os habitantes, o Povo, a população, o grupo social — chamem-lhe o que lhes der na gana — tenham consciência de pertencer a um mesmo agregado humano, enaltecer a sua história, desejar viver o presente em conjunto com os restantes elementos e, também, querer continuar no futuro a herança de vida em comum. Como nada disto ia, pela certa, na cabeça dos camponeses do Norte do território, também, pela certa, é um tremendo erro dizer que D. Afonso Henriques fundou a nacionalidade! O primeiro rei português foi, isso sim, um testa de ferro dos interesses dos grandes barões de entre Douro e Minho.
Anda por aí a circular uma quase tese segundo a qual D. Afonso Henriques não seria, efectivamente, o filho do conde D. Henrique e de D. Teresa. O pai morreu poucos anos após o nascimento do filho e este foi entregue (não se sabe quando) a Egas Moniz — um dos grandes barões do condado — para na qualidade de aio, o educar; a criança teria morrido e o nobre, de combinação com os outros grandes senhores da terra, substituiu-o por um seu filho da mesma idade. Claro que tudo isto não passa de uma hipótese, mais ou menos desconchavada, lançada para o ar e sem fundamento documental. Desta maneira justificar-se-ia o cruel tratamento do suposto D. Afonso para com a D. Teresa (raciocínio demasiado romântico e «bonzinho» para ser verdadeiro naquela altura da Idade Média! Esquecemos que, então, a rudeza de sentimentos caracterizava as relações sociais).
Seja como for, D. Afonso Henriques foi o primeiro rei de Portugal. A ele se deve a reconquista definitiva de todo o território do Estado até ao rio Tejo. Embora tenha andado pelas terras do Sul, foi, no fim da vida, obrigado pelos sarracenos a recolher as suas hostes para trás das águas do rio que divide esta área da Península.
Corro o risco de cometer aquilo que em História se chama um anacronismo, se disser que D. Afonso Henriques desenvolveu uma estratégia muito inteligente para conseguir fazer reconhecer o condado como um reino independente e não vassalo de Leão. O risco vem do facto de, no século XII, não ser conhecido o conceito de estratégia; não se falava de tal, mas já se praticava... Aliás, sempre se praticou, porque a estratégia está intimamente ligada ao conflito e, desde que dois homens coabitem o mesmo espaço, existe conflito, dando origem à definição instintiva de estratégias. Se aceitarmos a sua existência, embora não revelada como tal, estamos em condições de perceber como o primeiro rei de Portugal se movimentou para alcançar o objectivo que tinha em mente ou lhe era sugerido pelos seus mais próximos conselheiros. Vamos, então, esclarecer a questão.
D. Afonso tinha de desenvolver um conflito em três frentes adversas: os Mouros, a Sul do território, os Galegos/Leoneses, a Norte e Este e, por fim, a Santa Sé, autoridade indiscutível a quem o reconhecimento do poder temporal, naquelas épocas, se ficava a dever. O alcance do seu objectivo dependia da boa ou má articulação que fosse capaz de fazer destes factores.
Era necessário enfrentar militarmente Leão e os Mouros, mas havia que saber tirar proveito de ambas as acções. D. Afonso, depois de internamente dominar os adeptos da causa de D. Teresa — que a viam como sucessora do conde D. Henrique — optou por atacar, como se impunha, o primo, Afonso VII, de Leão, tomando a Galiza como eixo do movimento castrense. Nisto se gastou tempo até se chegar à paz de Tui, em Julho de 1137. Este acordo resultou da imperiosa necessidade de desviar forças para o Sul do território, entretanto atacado pelos Sarracenos.
Em 1140, D. Afonso Henriques sai vitorioso, na batalha de Ourique, contra os muçulmanos. Intitula-se, logo de seguida, rei de Portugal e de novo ataca a Galiza. As forças dos dois primos defrontam-se em Valdevez. Outra vez o auto aclamado rei de Portugal aceita fazer a paz com Afonso VII, agora em Zamora, corria o ano de 1143. À conferência esteve presente o cardeal Guido de Vico, representante do papa. O rei de Castela e Leão reconhece Afonso Henriques como rei de Portugal e este presta vassalagem ao papa, prometendo-lhe o pagamento de quatro onças de ouro em cada ano.
Porquê foi tão fácil o entendimento? Razão simples; Afonso VII queria ver-se reconhecido pela Santa Sé com o título de imperador da Hispânia, convindo-lhe deste modo a vassalagem de um rei, já que concedeu ao primo o título de senhor Astorga, alçando-se assim a seu suserano.
Pareciam conseguidos os intentos de D. Afonso I de Portugal, mas faltava o mais importante: o reconhecimento da Santa Sé. Para tanto, de novo, o monarca português usou de inteligência, tirando proveito da oportunidade que lhe surgia: atacou os Mouros, no Sul do território. Assim, lutando contra o infiel, alargava o território da cristandade enquanto engrandecia o seu reino. A tal não podia ficar indiferente o papa.
As conquistas começaram em 1147, por Santarém, e, continuando, caíram Lisboa, Sintra, Almada e Palmela. Em 1158 ou 1160 foi conquistada Alcácer do Sal. Já seguro do avanço, D. Afonso Henriques conquistou, em 1159, Tui, na Galiza. Depois, o território de Límia e, em 1163, Salamanca. É, então, que dois anos mais tarde, pelo Tratado de Pontevedra, o rei de Portugal e de Leão, acertam a paz e as devoluções respectivas. De novo, o monarca português se vira para Sul e já conquistada Évora, em 1179 o papa, pela bula Manifestis Probatum, reconhece D. Afonso I rei de Portugal. No ano anterior, o infante D. Sancho havia feito uma entrada em território sarraceno, chegando até aos arredores de Sevilha. Estavam alcançados os objectivos do primeiro rei de Portugal.
Fiel à estratégia definida, venceu resistências e dificuldades.
Tendo começado por uma pergunta retórica, deixem os meus leitores que finalize com mais duas:
— Como interpretarão os políticos nacionais, hoje, agora, as capacidades do fundador do Estado português? Seriam eles hábeis suficientes para traçar uma estratégia definidora de uma nova fundação?
Permitam-me que duvide...