quarta-feira, setembro 20

Ceuta: o princípio ou o fim?

Em 1411, D. João I, que havia sido mestre da Ordem Militar de Avis, alcançou a possibilidade de negociar com Castela um tratado de paz que, muito embora não fosse definitivo, dava-lhe já a garantia de cessarem por muito tempo as hostilidades com aquele reino peninsular. O estado de guerra arrastava-se, como é sabido, desde 1383, quando D. Fernando I falecera e D. Juan de Castela, casado com D. Beatriz, filha do monarca português, exigira assenhorear-se do reino. A burguesia de Lisboa e de outras cidades revoltou-se e levou o povo – a chamada «arraia miúda» - a tomar de assalto os castelos e casas senhoriais dos nobres que se mostraram dispostos a acatar o preceito medieval de jurar fidelidade ao novo soberano, como parecia estar certo segundo a tradição. Coube a D. João o encargo – mais imposto que assumido de boa vontade – de capitanear a revolta.
Estoicamente todos os defensores da nacionalidade manifestada pela primeira vez na História de Portugal souberam sofrer os azares da guerra, mas, pela arte de pelejar de D. Nuno Álvares Pereira e o auxílio de bons combatentes ingleses, no campo de Aljubarrota, no dia 14 de Agosto de 1385, foi derrotado o exército de Castela cujo rei, daí em diante, pouco ou nada mais se empenhou na luta pelos direitos que julgava ter sobre o trono português.
Vinte e seis anos depois, D. João I, com a paz celebrada, via-se consagrado rei de Portugal, sem a contestação de Castela. Tão importante era o facto para o soberano português que alvitrou a possibilidade de, durante um ano, se fazerem festejos em Lisboa para comemorar o acontecimento. No decorrer dessa festa, pensava o rei, haveria oportunidade de organizar as justas necessárias para, com brilhantismo, armar cavaleiros os filhos mais velhos, D. Duarte, D. Pedro e D. Henrique.
Conta a crónica (devida a Fernão Lopes, mas usualmente atribuída a Zurara) que, conversando sobre o assunto, os infantes se manifestavam desagradados da ideia paterna, por acharem mais importante conseguirem a sagração na ordem da cavalaria em acto verdadeiro de verdadeira peleja. Tê-los-á ouvido o vedor da fazenda João Afonso que lhes sugeriu Ceuta, terra de Mouros, onde lhes seria fácil guerrear por uma «boa causa».
Ainda hoje se discutem as verdadeiras razões da escolha da praça do Norte de África para iniciar uma peleja contra os islâmicos. Discute-se, porque, para além do já por mim relatado, nada mais se sabe dos reais motivos da decisão; o que fica claro é que foi um burguês quem alvitrou a conquista. E o alvitre transformou-se em realidade sem sabermos hoje os motivos exactos que impulsionaram o hesitante D. João I (até ao último instante ainda pediu conselho sobre a justeza da missão) a tomar de assalto e surpresa o porto e a cidade de Ceuta.
Terá sido para aliviar as costas de Portugal da constante acção dos piratas muçulmanos que saqueavam as povoações indefesas? Terá sido para conseguir suprir a deficiência de produção de trigo no reino? Esperava poder substituir-se aos Berbéres e continuar Ceuta a ser o grande centro de recepção de mercadorias vindas do Oriente? Terá querido impedir Castela de se expandir para África, ganhando um maior poder do que aquele já possuído na Península? Desejava manter ocupada a jovem nobreza do reino, dando-lhe uma guerra como entretém? Pensava aliviar tensões internas existentes entre a velha nobreza enriquecida e a mais jovem que aspirava a auferir pingues benefícios da coroa? Terá sido uma simples demonstração de força perante Castela de modo a consolidar a paz alcançada em 1411? Seria a ambição de controlar a entrada e saída do Mediterrâneo, garantindo, deste modo, a livre navegação no mar Atlântico que se abria face à costa portuguesa?
Estas e tantas outras hipóteses são plausíveis perante o silêncio da documentação coeva. Todavia, seja como for, a conquista da praça no Norte de África abriu um ciclo novo na História de Portugal: o reino, com as fronteiras peninsulares estabilizadas, podia alargar-se para além do mar depois da demonstração de força que foi feita no assalto aos infiéis dos Algarves africanos.
Na realidade, alargou-se, nos anos que se seguiram, não pela conquista, empunhando armas, mas achando novas terras no meio do Atlântico ou ao longo do continente africano.
Não relatarei essa expansão que, muito provavelmente, constituiu o ponto mais alto de toda a História de Portugal (não cabia no curto espaço deste apontamento, nem vinha a propósito). No entanto, vou fazer algo que aos historiadores é vedado, mas autorizado aos politólogos e aos estudiosos da relações internacionais: explorar o condicional da História, isto é, colocar hipóteses académicas capazes de permitir imaginar como teria sido se não tivesse sido como foi.
Ora, como já disse, foi com a conquista de Ceuta que se iniciou a Expansão Portuguesa. Imaginemos, por momentos, que D. João I, na senda das suas dúvidas e incertezas, tinha feito abortar o projecto apresentado pelos infantes e teimara na realização dos festejos em Lisboa; que D. Henrique nunca se interessara pelas navegações e se deixara a outros povos o encargo de desvendar as terras desconhecidas. Como teria sido o evoluir da vida nacional?
Na impossibilidade de saber o que não foi nem aconteceu, resta-me dar largas à suposição, admitindo como constante quase toda a restante História da Europa.
Portugal teria, com grande probabilidade, desenvolvido mecanismos de sobrevivência autónoma na Península cada vez mais unida e ampla sob a hegemonia de Castela. Ter-se-ia ligado por alianças aos Estados que guerrearam a Espanha o que supõe o entendimento com a Inglaterra, mas também com a França e eventualmente com a Áustria ou a Prússia, já que não tinha que privilegiar a boa relação com a potência marítima – no caso, a Inglaterra. A política externa de Lisboa teria estado mais dependente dos centros de decisão terrestre do que dos marítimos. Portugal teria «aprendido» as regras da diplomacia complexa das potências europeias ao contrário de se refugiar no comércio e exploração dos territórios de além-mar; naturalmente, haveria de ter de arrancar da terra a sua sobrevivência, tornando os Portugueses num povo laborioso, menos dedicado ao comércio e mais empenhado na indústria, talvez mais agrícola. Portugal e os Portugueses teriam sabido, por experiência vivida, que não se resolvem os grandes problemas por recurso a um D. Sebastião chegado numa manhã de nevoeiro; que, a garra ancilosante da Igreja Católica era contraproducente e tê-la-iam sacudido, deixando livre os caminhos para a livre iniciativa e o livre curso do pensamento.
Para não alongar a divagação pelos condicionais da História, resta-me deixar ao leitor paciente esta dúvida que me assalta nos momentos de reflexão: a conquista de Ceuta terá sido o começo ou o fim de um caminho diferente para Portugal? Terá sido o começo de uma nova maneira de estar na Península e na Europa ou o fim de um curto caminho continental? É a Ceuta que devemos assacar responsabilidades de ser como somos na actualidade ou não?
Fica a interrogação que, obviamente, não pode ter resposta, mas pode inquietar todos quantos se comprazem no deleite da especulação intelectual.