domingo, dezembro 17

Pinochet, eu e a censura

Pouco passava do meio da minha comissão militar em Moçambique, corria o ano de 1968, quando vi pela primeira vez o meu nome a encabeçar uma crónica nas páginas de um jornal.
A minha estreia foi feita pela mão exigente, mas bondosa e protectora, do meu Pai. Foi ele quem me iniciou nesta coisa de escrever para os outros e me incentivou no caminho do jornalismo - mesmo que não profissional. Devo-lhe o facto de ter publicado a primeira crónica nas páginas do mais antigo jornal português: o Açoriano Oriental. Crónica ingénua como tudo o que se escreve na juventude e quando se vive animado de ideais grandiosos (que o tempo e a experiência se encarregam de esbater). Contudo, logo no primeiro escrito publicado senti a acção do lápis azul da Comissão de Censura Prévia. Cortaram e retalharam algumas frases e ideias que o chefe de redacção, propositadamente, não compôs para se perceber - e eu também - a descomunal ignorância e insensibilidade dos censores.
Ao contrário do que terá acontecido com muitos estreantes, não desisti; antes pelo contrário, esse acto dos vigilantes da palavra e do pensamento, no Portugal da ditadura, acicataram-me a vontade e o desejo de refinar o jeito de dizer o que queria, passando nas malhas da sua monumental ignorância e ausência de perspicácia dos censores.
Os anos correram. Passei a colaborar regularmente, também, com a Gazeta de Coimbra, que várias vezes me honrou ao atirar para editorial muitas das minhas crónicas. Regressei a Moçambique, pela segunda vez, e lá recebi convite de gente conhecida e ligada à Emissora do Aero-Clube da Beira para com eles colaborar. Colocou-se-me uma questão, que passo a expor.
Escrever para uns jornais de pequena divulgação nacional - quer o Açoriano Oriental quer a Gazeta de Coimbra não chegavam a Lisboa, às bancas de venda pública da imprensa, por se tratarem de folhas regionais que cumpriam o seu importante papel localmente - era, para mim, na época tenente e capitão, pouco relevante, pois não punha em causa a minha estabilidade na vida militar. Contudo, numa pequena cidade como era a Beira, no ano de 1973, onde toda a gente se conhecia, já se tornava problemática uma visibilidade excessivamente pública. Pensei como havia de tornear a situação. Fiz duas opções: em primeiro lugar, escreveria uma crónica por semana sobre política internacional - bastante mais inócua do que os faits divers nacionais; depois, escolheria um pseudónimo. Com esta camuflagem estaria, julgava eu, mais ou menos “encoberto” dos ouvidos dos comandantes das unidades da Força Aérea estacionadas na área da cidade. Acresce que a confiança política nos responsáveis pelos programas radiofónicos era tal – e, em especial, no engenheiro Jorge Jardim verdadeiro “dono” da emissora – que tudo o que se dizia não precisava de ser previamente autorizado pela censura.
Assim, lá comecei, sob a “capa” de Luís de Avelar, a debitar as minhas opiniões sobre o que se passava pelo mundo. A princípio, gravava a crónica, mas mais tarde, depois de ter adquirido prática e de saber como controlar situações inesperadas, passei a fazer a leitura dos meus textos em directo.
Pelos canais que os promotores de programas de rádio tinham, naquela época, para sondar a opinião pública fomos sendo informados da audiência do meu comentário semanal. Havia gente que gostava das minhas intervenções e esperava com ansiedade a quarta-feira, depois das 21 horas, para escutar a minha crónica. Da censura, nem novas nem mandadas! Se ouviam, ou não percebiam ou não encontravam matéria para discordância. No entanto, já assim não aconteceu com o comandante do Batalhão de Caçadores Pára-quedistas – unidade onde estava colocado – pois mandou o oficial de operações inquirir-me quanto ao facto de eu falar na rádio. Não escondi, assumindo a responsabilidade, embora me tenha escudado no uso do pseudónimo inibidor de se relacionar o autor das crónicas com um oficial da Força Aérea. O assunto ficou esquecido, embora soubesse que tanto aquele oficial como o comandante do Batalhão eram meus fiéis ouvintes. Não, por certo, com o desejo de me escutarem, mas para garantirem que eu não era um elemento subversivo infiltrado nas fileiras da unidade.

Quando Augusto Pinochet tomou de assalto o Poder político no Chile, como não podia deixar de ser, fiz o meu comentário centrado na figura de Salvador Allende e no quanto tinha querido trazer os mais desfavorecidos elementos da sociedade chilena para o limiar do bem-estar, através da aplicação de medidas de justiça social.
Dessa vez, face à actuação bárbara e oportunista dos militares, deixei-me levar pela emoção e escrevi sem rebuço o que pensava. Expliquei que se derrubara uma democracia para se implantar uma ditadura, que a humanidade ficara mais pobre por se terem alcandorado ao mando de um Estado militares que não iriam respeitar as liberdades mais essenciais. Enfim, disse o que era esperado calar-se, tanto mais que o fazia na segunda maior cidade de Moçambique, território onde se combatia pela libertação colonial.
Dessa noite em diante os meus textos tiveram de passar a ser previamente censurados. Era o único em toda a Emissora do Aero-Clube da Beira a quem tal se impunha. Confesso que, ao contrário de me moderar, embraveci no teor dos meus comentários. Passei foi a usar de toda a artimanha de que já me socorria em Portugal para ultrapassar o raciocínio rectilíneo dos censores. Disse sempre o que quis, contudo de uma maneira mais encapuzada, onde as pausas, os silêncios e as inflexões de voz dessem aos textos os sentidos que os olhos dos míseros censores não conseguiam vislumbrar.
Como se vê, lá de tão longe, Pinochet também conseguiu que me tentassem calar. Não lograram os esbirros nacionais fazê-lo, pelo menos na medida em que o desejavam.
A Liberdade tem a força da Fénix, renasce das próprias cinzas.