segunda-feira, abril 23

1 - No centenário do meu Pai

A 4 de Dezembro próximo, passa o centenário de nascimento do meu pai.
Há anos, pensei prestar-lhe uma homenagem bem mais luzida do que esta; esta que vai ficar aqui na blogosfera para quem quiser dela desfrutar. Imaginava-me com forças e paciência – acima de tudo, paciência – para compilar as muitas crónicas que foi publicando na imprensa regional e, depois de seleccionar as que tivessem maior actualidade, procurar os devidos apoios para publicar um livro; um pequeno volume que deixasse, mais uma vez, o seu nome nos catálogos da Biblioteca Nacional. Seria um marco para reavivar o passado e um pequeno luzeiro para todos quantos quisessem orientar-se pela opinião de um Homem vertical. Confesso, faleceram-me as forças que me iriam animar a necessária paciência para tal empresa. Outros desafios se me foram colocando e o sentimento de gratidão – ainda bem vivo em mim – decaiu no seu propósito. Assim, modifiquei os planos, alterei as rotas, corrigi os rumos e optei por ir juntando neste blog lembranças, recordações, escritos e deitar tudo neste espaço onde todos chegam gratuitamente, animados pela curiosidade ou empurrados pela força do acaso. Não figurará o seu nome no catálogo da Biblioteca Nacional, mas derramar-se-á por todos os continentes, esperando os olhos ávidos de leitura, de leitura na língua de Camões.

Seria lógico que começasse a homenagem, dizendo quem foi, quem era, o meu pai; acima de tudo, seria curial que iniciasse a narração pelo princípio, isto é, pelo dia 4 de Dezembro de 1907. Não o vou fazer assim. E não o faço, pois iria incorrer na vulgaridade e o meu pai, ainda que quase um anónimo no país, ainda que só conhecido de alguns – a maioria já não pertence ao número dos vivos – não era vulgar. Aliás, julgo que, quase para todos nós, o nosso pai nunca é vulgar! Então, o meu, por razões que não são as de toda a gente, era menos vulgar ainda.

Os meus sonhos, como nuvens, vão dispersos
- São pombas que fugiram de um pombal –
Seguindo rumos vários, já imersos,
Na senda de inclemente vendaval…

Sonhos loucos, criados nos reversos
Da cunhada medalha do Irreal,
Procuram, em tropel, mundos diversos
Em longa caminhada sideral.

Gótica catedral, por mim erguida,
Em cada ogiva pus, como em guarida,
Um sonho, uma ilusão, uma quimera.

Desfez-se a catedral – era de espuma,
Das minhas ilusões ficou só uma,
Incerta da Certeza que eu quisera!

Um Homem prático, quase, aparentemente, frio e com pés de chumbo, calcando as pedras que a Vida lhe colocou nos trilhos que teve de percorrer, o meu pai deixou para nós, para a posteridade, esta prova, este testemunho de uma alma capaz de sonhar! Afinal, sonhou, sonhava, mas a realidade de um dia-a-dia eriçado de dificuldades, cravando-lhe os espinhos aguçados de um pão que tinha de ser suado, dispersaram-lhe a capacidade onírica que nele restava.

E o soneto que deixo hoje aqui não o escreveu no ardor da juventude – nem o poderia ter feito, tal o misto de sentimentos lançados ao papel. Não. Saiu-lhe da esferográfica a meses de completar sessenta anos de idade. É o grito de quem viveu espartilhado entre a obrigação e a ânsia de ser livre. É a dureza de quem olha já o fim sem ter podido começar por onde se inicia a caminhada. E, como a Vida é cruel, cheia de surpresas, plena de esquinas quando se julga estar a calcorrear seguras rectas, ele, o meu pai, o Homem que viu a sua catedral desfeita em espuma, morreu treze anos depois!

Atrás de si deixou, em nós, um grande vazio. A nossa saudade, as minhas saudades foram pazadas incapazes de encher esse espaço, esse imenso buraco que o tempo disfarçou, mas jamais esqueci o sentimento de ter uma muralha a segurar-me mesmo quando se me começavam a encanecer os cabelos. O meu pai era essa imensa muralha, mais longa do que a da China e mais alta do que a de qualquer castelo roqueiro.