sábado, maio 19

5 - No centenário do meu Pai



Tanto quanto me lembro de ter visto na caderneta escolar do meu pai – que anda agora perdida, não sei onde – foi nesse ano longínquo de 1927 que, no Liceu Pedro Nunes, de Lisboa, concluiu os dois primeiros anos do ensino secundário oficial. Fê-lo na qualidade de aluno externo, proposto pelo Colégio Liceu de Sintra onde dava aulas de Português e Latim.

Tal como era próprio da época, fumava cigarros sem filtro que, no continente, se vendiam bastante mais caros do que nos Açores (há que atender ao facto de por lá haver produção local com fartura). O que lhe pagavam em dinheiro, no colégio de Sintra, mal chegava para as despesas do tabaco. Depois, acontecia que gostava de vir até ao centro histórico da vila beber um café no estabelecimento que ainda existe na esquina de quem está virado para o caminho de Monserrate, aquele que tem uma pequena varanda com mesas cá fora, mesmo ao lado do velho hotel. Era no canto do lado esquerdo de quem entra que se sentava a escrever e a ensaiar as tentativas poéticas.
Por lá conheceu figuras curiosas cujos nomes já não lembro: um pintor que deixou quadros com valor sobre Sintra e a serra, um jovem titular galego perdulário que o levava de automóvel ao Estoril e se confessava apaixonado pela minha mãe – que já se encantara de amores por aquele jovem açoriano e antigo seminarista. Mas um salário mais elevado, a condizer com as suas limitadas necessidades, impunha-se (a roupa que tinha eram os dois fatos pretos de seminarista, os sapatos, duas ou três camisas com colarinhos – no seminário usava-as sem eles para lhes colocar por cima o cabeção – e uma ou duas gravatas, alguns pares de meias, que ia passajando quando a teimosia do dedo do pé se impunha à fragilidade do tecido). Em Sintra não lhe podiam oferecer mais. A inflação galopante engolia as mensalidades que os pais pagavam pelo internato dos alunos.

De novo, com o apoio dos clérigos da Igreja Católica, conseguiu a transferência para o Colégio de Ermesinde, também chamado Colégio da Formiga por estar instalado no velho convento dos Eremitas Descalços de St.º Agostinho que, no século XIX, tomou a designação de Real Convento de Nossa Senhora do Bom Despacho da Mão Poderosa, o qual, já em 1842, era estabelecimento de ensino para os filhos dos miguelistas que não conseguiram emigrar e usavam como emblema uma formiga, recordando o conselho canónico «Vade ad formicam, piger, et disce sapientiam».
Por lá esteve o ano lectivo de 1927/28 que lhe deu para concluir o antigo 5.º ano dos liceus. Mas o Norte de Portugal não estava talhado para o meu pai. Queria vir para Lisboa onde as oportunidades se mostravam maiores. Depois, o acicate da falta de dinheiro era grande e na capital poderia tentar, agora com habilitações oficiais mais amplas, outros meios de ganhar o sustento, continuando a estudar – julgava – e avançar, após a conclusão do curso secundário, para a Faculdade de Direito, seu sonho íntimo.

Outra vez mais, com o apoio dos bons padres, que acreditavam recuperar uma vocação transviada, ingressou no corpo redactorial do diário católico Novidades.
Aqui tenho de fazer uma breve paragem no relato biográfico para enquadrar aquele matutino de Lisboa no contexto da época.

O Novidades era, nos últimos anos da 1.ª República, o mais forte refúgio da ideologia exposta na encíclica «Rerum Novarum», de Leão XIII. Ao mesmo tempo, constituía o baluarte dos católicos militantes que a custo aceitaram, em Portugal, a lei da Separação das Igrejas do Estado. Dali se fez trincheira contra as arremetidas de toda a imprensa republicana, em especial da que alinhava ou com o Partido Democrático – liderada pelo matutino O Mundo – e da que se arvorava em bandeira do livre pensamento.
Foi no jornal Novidades, sob o pseudónimo de Alves da Silva, que António de Oliveira Salazar, nos anos anteriores ao meu pai integrar o quadro de reportagem, fez publicar, enquanto membro do CADC e professor de Finanças da Faculdade de Direito de Coimbra, alguns dos artigos onde expunha as soluções que preconizava para pôr fim ao caos económico no qual Portugal estava mergulhado (ou que, pelo menos, muita da opinião contrária à República assim propalava e fazia crer) e que Sinel de Cordes, ministro das Finanças, não conseguia solucionar. Era um jornal com muita tiragem junto das camadas urbanas católicas e conservadoras, embora só pontualmente alinhasse aliar-se à faixa da oposição monárquica que possuía a sua própria imprensa.
Convirá recordar que, em 1928, a ditadura militar, liderada por Óscar Fragoso Carmona, ainda procurava encontrar o rumo político que conduzisse o país ao melhor porto de abrigo; uns preconizavam a intervenção militar com curta duração, outros que se fizesse a viragem para a Monarquia e muitos que se cortassem as amarras com a Constituição Política de 1911, então suspensa, para se encontrar uma nova fórmula governativa republicana onde prevalecesse a autoridade e a ordem. Como se sabe, prevaleceu a última a vontade, impondo Salazar, como governante tirânico, até 1968.

Foi este quadro que o jovem antigo seminarista de Angra do Heroísmo, quase acabado de chegar ao continente, teve de enfrentar na redacção do jornal católico de referência em Lisboa. O clima não era, de certeza, fácil para quem havia dois anos antes ainda se limitava a alinhar versos suaves e idílicos numa cidade afastada de todo o torvelinho da capital.
Acresce que, também pelo jornal, o salário não era abundante, mas dava para pagar o alojamento numa modesta casa de hóspedes, situada em uma das várias ruas próximas da avenida da Liberdade, onde tomava o pequeno-almoço, e sobrava para, com cautela, comer mais uma refeição por dia. Passava fome, o meu pai! Em carta que guardo, mandada para a irmã Maria – a segunda filha de toda a prole – confessava que lhe era agora muito útil a prática de jejum aprendida no seminário.

Da sua vida de jornalista quero realçar uns quantos episódios que guardo na memória, por os ter ouvido contar em diferentes alturas da minha meninice e juventude (devo dizer que o meu pai, ao contrário de mim, não gostava de falar do passado… o presente absorvia-o mais ou os sonhos desfeitos pelas agruras da vida representavam uma barreira com a qual lidava dificilmente; nunca desvendei este mistério).

O salário era calculado segundo um método curioso onde a exploração imperava na sua mais primária forma. Vejamos.
Havia uma parte fixa e inalterável, exígua, que lhe garantia o alojamento e muito pouco mais; a acrescentar a esta vinha outra parte móvel que resultava da dimensão de colunas preenchidas em cada edição do jornal. Era esta que arredondava, para cima, o mês, garantindo maior ou menor conforto nos trinta dias seguintes.
O meu pai explicava a sua grande tendência para a prolixidade escrita (uma pequena notícia havia que a «estender» para o chefe da redacção - um monsenhor de quem já não recordo o nome - cortar até lhe dar o tamanho julgado conveniente) baseado neste imperativo da sua juventude. Está claro que, para mim, nunca foi convincente, pois, tal como ele, há quem me acuse de me alongar nos relatos. Vem nos genes, lá isso vem.

No jornal recebia adiantado o dinheiro para os transportes, quando tinha de se deslocar para zonas distantes da cidade. Ora, como os meus avós maternos viviam em Santo Amaro – bem longe da Baixa – era com dificuldade que o meu pai visitava a minha mãe (além de que tinha de encarar com a má catadura do meu avô o qual, como velho republicano, não levava à paciência entrar-lhe pela porta e um dia para a família um antigo seminarista… Parecia maldição!). As reportagens para longe garantiam-lhe a possibilidade de se escapar até à rua dos Lusíadas, usando de um artifício que rapidamente aprendeu, como se aprende quando a lei da sobrevivência manda mais.
Se o acontecimento ia ter a cobertura de outro jornal, o meu pai combinava com um repórter «da concorrência» a hora a que lhe podia telefonar, enquanto se esgueirava para o Alto de Santo Amaro, usando os magros centavos recebidos para pagamento das deslocações. À hora aprazada, de casa do Senhor Comandante (um vizinho do meu avô que tinha telefone) o meu pai lá estabelecia a ligação com o colega recebendo os dados da ocorrência e, era na mesa da sala de jantar do meu avô, que nascia um longo e floreado relato, cheio de pormenores escrito numa prosa corrida e nervosa, como convinha na época para gerar a emoção nos leitores e, acima de tudo, impressionar o chefe de redacção. Normalmente, jantava lá em casa para conforto do estômago espalmado de fome. À hora conveniente, retirava-se, não sendo muito tarde, porque nem a minha avó, e menos ainda o meu avô, perdia de vista o gabiru não fosse fazer das que não se aprendem nos seminários, mas que não precisam de explicações.
Manhosices da natureza desta que relatei nascem de sistemas de exploração pouco dignos, fazendo que os explorados se defendam através do embuste. Para lá caminhamos, nos tempos que correm, a passos bem largos!

Nos anos de 1928 e 1929 – aqueles em que o meu pai foi repórter – a aviação vivia ainda a sua juventude e, entre nós, os oficiais pilotos aviadores eram heróis glorificados pela série de epopeias conseguidas por esses anos. O «café» Gelo, no Rossio, era o ponto de encontro de quase todos antes de embarcarem no comboio rumo à Amadora onde estava instalado o Grupo de Esquadrilhas de Aviação «República» (GEAR), unidade que já tinha, no seu palmarés, umas averbadas quantas façanhas aeronáuticas.
A relação entre aviadores e repórteres era excelente, porque dela poderiam vir bons resultados para ambas as partes; aos primeiros os segundos garantiam publicidade nas páginas dos jornais e estes ganhavam fama de aventureiros narrando as proezas em que tomavam parte. O meu pai deixou-se enredar nesta teia entusiasmante, mas foi por pouco tempo. Eu conto.
Certa manhã, no referido «café» do Rossio, um oficial aviador desafiou-o a irem até à Amadora para darem uma «volta» de avião. A novidade entusiasmou o meu progenitor, o sangue ferveu-lhe mais rubro nas veias e lá foi – à custa do oficial, claro – até ao GEAR. Não sei de que tipo de aeronave se tratava, só recordo que tinha dois lugares em tandem, sendo que no da frente ia o piloto e no de trás o meu pai.
Foram para a região da serra de Sintra e por lá o piloto quis mostrar as suas capacidades, fazendo acrobacia (não imagino que espécie de figuras) com voltas e reviravoltas apertadas. O meu pai não era homem de enjoar. O estômago – se calhar por hábito de estar vazio – a nada se comoveu, só que, em dado momento o meu progenitor inclinou-se para a frente e uma almofada do assento soltou-se e voou pelos ares. O aviador continuou até esgotar a sua perícia, regressando à Amadora. Quando aterraram e a aeronave se imobilizou, se calhar com ar irónico – que o meu pai não compreendeu, talvez por desconforto – perguntou-lhe o piloto: - Então você ainda está aí? Pensei que tinha caído lá na serra de Sintra!
A reportagem saiu no jornal, mas o meu pai passou a preferir os navios e o mar, que tão familiar lhe era, aos aviões pilotados por «gloriosos malucos».

Viviam-se os primeiros anos de censura prévia a qual afectava, em especial e em primeiro lugar, os jornais e os jornalistas (a rádio, nesses anos, estava a ensaiar os primeiros passos e só o teatro de revista fazia crítica social e política).
Dado que o Novidades se vendia de manhã, tinham de estar prontas as provas tipográficas por volta da meia-noite para as levar à comissão de censura e voltarem a tempo de, sobre a madrugada, se comporem os cortes e imprimir o jornal. Não era necessário empenhar neste trabalho todos os elementos da redacção; bastava que, até à hora do jornal sair para a rua, ficasse um redactor presente para estabelecer o entendimento com a comissão de censura e os tipógrafos, responsabilizando-se pela introdução dos cortes e respectiva reordenação das colunas. Para este serviço havia uma escala que obrigava todos os jornalistas ou, pelo menos, os mais jovens e com menores responsabilidades. Escusado será dizer que o elemento destacado para ficar de turno quase aguentava as vinte e quatro horas do dia acordado e a trabalhar. Quando algo corria mal na edição, por não ter sido introduzido o corte da censura, lá ia o desgraçado, em vez de repousar para casa, passar o resto da manhã em interrogatório na toda-poderosa comissão.
O meu pai, por duas vezes, foi chamado à censura. A primeira teve origem em uma qualquer falha de somenos importância, mas a segunda resultou da saída sem cortes de um artigo de fundo sobre o aumento do gás de cidade (estou a reproduzir de memória o que ouvi). Ora, aconteceu que esse tal artigo tinha sido amplamente amputado e, por uma coincidência desastrosa, era da autoria do meu pai.
Depois de muito esperar para ser recebido e ouvido pelos responsáveis lá entrou e, como lhe foi possível, tentou justificar uma falha para a qual não tinha explicação que fosse além do muito cansaço com que estava a trabalhar. O censor, impávido, repousado, ufano da sua autoridade, rematou um longo discurso, avisando: - E tome atenção, se isto se repete vai deportado para as ilhas!
Extenuado, farto da petulância de um pequeno tiranete, o meu pai, com grande à-vontade retorquiu: - Isso não é assim tão mau, porque eu sou de lá!
Irado e frustrado, o censor grita-lhe: - Então vai para Cabo Verde!
Era assim a censura nos anos longínquos de 1927 e 1928.

Estava em Lisboa, também a estudar, com um pequeno apoio da família, um antigo companheiro do seminário, irmão daquele que, muitos anos mais tarde, haveria de ser bispo de Cochim e patriarca das Índias Orientais, D. José Vieira Alvernaz. Sabendo que o meu pai estava no Novidades logo se aproximou (era um homem de uma imensa estatura física que veio, poucos anos depois, a morrer tuberculoso… fruto das dificuldades de então!) e de novo retomaram a amizade que vinha de longe.
Por vezes – não tão raras como actualmente – os jornalistas eram convidados para toda a espécie de eventos sociais onde se serviam bebidas espirituosas acompanhadas dos salgadinhos da época e pequenas sanduíches. Sabendo das dificuldades do seu amigo Alvernaz, o meu pai conseguia para ele um passe de jornalista e os dois, literalmente, atacavam os comes e bebes como se fossem camelos em véspera de travessia do deserto. Mais perito neste tipo de reabastecimento era o Alvernaz que conseguia encher os bolsos com reservas para, horas mais tarde, voltar a saciar a fome.
Já o meu pai tinha casado e algumas vezes convidou o seu antigo condiscípulo para jantar lá em casa, frente a uma mesa farta.
O ex-seminarista Alvernaz morreu sem conseguir concluir o curso de Direito como tanto ambicionava.

Desgostoso do trabalho, miseravelmente pago, incapaz de continuar os estudos, o meu pai, certa vez deu com um anúncio oficial para ser publicado no jornal. Nele constava que ia abrir concurso para o curso de enfermeiro da Armada. Era condição mínima ter mais de 21 anos, não ter sido dado como incapaz para o serviço militar, não possuir maleitas ou deformações e estar habilitado, no mínimo, com o 2.º ano do curso geral dos liceus. Oferecia-se o posto de cabo-aluno com direito a farda de sargento, alojamento, ordenado, fardamento e alimentação. Ao fim de três anos o candidato, tendo obtido aprovação, receberia as divisas de segundo-sargento.
Não seria advogado, nem jornalista, nem poeta – tudo coisas pelas quais tinha lutado – mas seria enfermeiro, profissão que jamais estivera no horizonte da sua imaginação. Tinha, até, uma certa aversão aos hospitais, mas tinha-a maior à fome e às dificuldades financeiras.
Concorreu à Armada. Foi admitido e cortou de vez as amarras que o ligavam ainda a um passado de preparação para eclesiástico.

Uma nova página estava virada na sua vida. Havia que a preencher da melhor maneira.