sábado, maio 19

5 - No centenário do meu Pai



Tanto quanto me lembro de ter visto na caderneta escolar do meu pai – que anda agora perdida, não sei onde – foi nesse ano longínquo de 1927 que, no Liceu Pedro Nunes, de Lisboa, concluiu os dois primeiros anos do ensino secundário oficial. Fê-lo na qualidade de aluno externo, proposto pelo Colégio Liceu de Sintra onde dava aulas de Português e Latim.

Tal como era próprio da época, fumava cigarros sem filtro que, no continente, se vendiam bastante mais caros do que nos Açores (há que atender ao facto de por lá haver produção local com fartura). O que lhe pagavam em dinheiro, no colégio de Sintra, mal chegava para as despesas do tabaco. Depois, acontecia que gostava de vir até ao centro histórico da vila beber um café no estabelecimento que ainda existe na esquina de quem está virado para o caminho de Monserrate, aquele que tem uma pequena varanda com mesas cá fora, mesmo ao lado do velho hotel. Era no canto do lado esquerdo de quem entra que se sentava a escrever e a ensaiar as tentativas poéticas.
Por lá conheceu figuras curiosas cujos nomes já não lembro: um pintor que deixou quadros com valor sobre Sintra e a serra, um jovem titular galego perdulário que o levava de automóvel ao Estoril e se confessava apaixonado pela minha mãe – que já se encantara de amores por aquele jovem açoriano e antigo seminarista. Mas um salário mais elevado, a condizer com as suas limitadas necessidades, impunha-se (a roupa que tinha eram os dois fatos pretos de seminarista, os sapatos, duas ou três camisas com colarinhos – no seminário usava-as sem eles para lhes colocar por cima o cabeção – e uma ou duas gravatas, alguns pares de meias, que ia passajando quando a teimosia do dedo do pé se impunha à fragilidade do tecido). Em Sintra não lhe podiam oferecer mais. A inflação galopante engolia as mensalidades que os pais pagavam pelo internato dos alunos.

De novo, com o apoio dos clérigos da Igreja Católica, conseguiu a transferência para o Colégio de Ermesinde, também chamado Colégio da Formiga por estar instalado no velho convento dos Eremitas Descalços de St.º Agostinho que, no século XIX, tomou a designação de Real Convento de Nossa Senhora do Bom Despacho da Mão Poderosa, o qual, já em 1842, era estabelecimento de ensino para os filhos dos miguelistas que não conseguiram emigrar e usavam como emblema uma formiga, recordando o conselho canónico «Vade ad formicam, piger, et disce sapientiam».
Por lá esteve o ano lectivo de 1927/28 que lhe deu para concluir o antigo 5.º ano dos liceus. Mas o Norte de Portugal não estava talhado para o meu pai. Queria vir para Lisboa onde as oportunidades se mostravam maiores. Depois, o acicate da falta de dinheiro era grande e na capital poderia tentar, agora com habilitações oficiais mais amplas, outros meios de ganhar o sustento, continuando a estudar – julgava – e avançar, após a conclusão do curso secundário, para a Faculdade de Direito, seu sonho íntimo.

Outra vez mais, com o apoio dos bons padres, que acreditavam recuperar uma vocação transviada, ingressou no corpo redactorial do diário católico Novidades.
Aqui tenho de fazer uma breve paragem no relato biográfico para enquadrar aquele matutino de Lisboa no contexto da época.

O Novidades era, nos últimos anos da 1.ª República, o mais forte refúgio da ideologia exposta na encíclica «Rerum Novarum», de Leão XIII. Ao mesmo tempo, constituía o baluarte dos católicos militantes que a custo aceitaram, em Portugal, a lei da Separação das Igrejas do Estado. Dali se fez trincheira contra as arremetidas de toda a imprensa republicana, em especial da que alinhava ou com o Partido Democrático – liderada pelo matutino O Mundo – e da que se arvorava em bandeira do livre pensamento.
Foi no jornal Novidades, sob o pseudónimo de Alves da Silva, que António de Oliveira Salazar, nos anos anteriores ao meu pai integrar o quadro de reportagem, fez publicar, enquanto membro do CADC e professor de Finanças da Faculdade de Direito de Coimbra, alguns dos artigos onde expunha as soluções que preconizava para pôr fim ao caos económico no qual Portugal estava mergulhado (ou que, pelo menos, muita da opinião contrária à República assim propalava e fazia crer) e que Sinel de Cordes, ministro das Finanças, não conseguia solucionar. Era um jornal com muita tiragem junto das camadas urbanas católicas e conservadoras, embora só pontualmente alinhasse aliar-se à faixa da oposição monárquica que possuía a sua própria imprensa.
Convirá recordar que, em 1928, a ditadura militar, liderada por Óscar Fragoso Carmona, ainda procurava encontrar o rumo político que conduzisse o país ao melhor porto de abrigo; uns preconizavam a intervenção militar com curta duração, outros que se fizesse a viragem para a Monarquia e muitos que se cortassem as amarras com a Constituição Política de 1911, então suspensa, para se encontrar uma nova fórmula governativa republicana onde prevalecesse a autoridade e a ordem. Como se sabe, prevaleceu a última a vontade, impondo Salazar, como governante tirânico, até 1968.

Foi este quadro que o jovem antigo seminarista de Angra do Heroísmo, quase acabado de chegar ao continente, teve de enfrentar na redacção do jornal católico de referência em Lisboa. O clima não era, de certeza, fácil para quem havia dois anos antes ainda se limitava a alinhar versos suaves e idílicos numa cidade afastada de todo o torvelinho da capital.
Acresce que, também pelo jornal, o salário não era abundante, mas dava para pagar o alojamento numa modesta casa de hóspedes, situada em uma das várias ruas próximas da avenida da Liberdade, onde tomava o pequeno-almoço, e sobrava para, com cautela, comer mais uma refeição por dia. Passava fome, o meu pai! Em carta que guardo, mandada para a irmã Maria – a segunda filha de toda a prole – confessava que lhe era agora muito útil a prática de jejum aprendida no seminário.

Da sua vida de jornalista quero realçar uns quantos episódios que guardo na memória, por os ter ouvido contar em diferentes alturas da minha meninice e juventude (devo dizer que o meu pai, ao contrário de mim, não gostava de falar do passado… o presente absorvia-o mais ou os sonhos desfeitos pelas agruras da vida representavam uma barreira com a qual lidava dificilmente; nunca desvendei este mistério).

O salário era calculado segundo um método curioso onde a exploração imperava na sua mais primária forma. Vejamos.
Havia uma parte fixa e inalterável, exígua, que lhe garantia o alojamento e muito pouco mais; a acrescentar a esta vinha outra parte móvel que resultava da dimensão de colunas preenchidas em cada edição do jornal. Era esta que arredondava, para cima, o mês, garantindo maior ou menor conforto nos trinta dias seguintes.
O meu pai explicava a sua grande tendência para a prolixidade escrita (uma pequena notícia havia que a «estender» para o chefe da redacção - um monsenhor de quem já não recordo o nome - cortar até lhe dar o tamanho julgado conveniente) baseado neste imperativo da sua juventude. Está claro que, para mim, nunca foi convincente, pois, tal como ele, há quem me acuse de me alongar nos relatos. Vem nos genes, lá isso vem.

No jornal recebia adiantado o dinheiro para os transportes, quando tinha de se deslocar para zonas distantes da cidade. Ora, como os meus avós maternos viviam em Santo Amaro – bem longe da Baixa – era com dificuldade que o meu pai visitava a minha mãe (além de que tinha de encarar com a má catadura do meu avô o qual, como velho republicano, não levava à paciência entrar-lhe pela porta e um dia para a família um antigo seminarista… Parecia maldição!). As reportagens para longe garantiam-lhe a possibilidade de se escapar até à rua dos Lusíadas, usando de um artifício que rapidamente aprendeu, como se aprende quando a lei da sobrevivência manda mais.
Se o acontecimento ia ter a cobertura de outro jornal, o meu pai combinava com um repórter «da concorrência» a hora a que lhe podia telefonar, enquanto se esgueirava para o Alto de Santo Amaro, usando os magros centavos recebidos para pagamento das deslocações. À hora aprazada, de casa do Senhor Comandante (um vizinho do meu avô que tinha telefone) o meu pai lá estabelecia a ligação com o colega recebendo os dados da ocorrência e, era na mesa da sala de jantar do meu avô, que nascia um longo e floreado relato, cheio de pormenores escrito numa prosa corrida e nervosa, como convinha na época para gerar a emoção nos leitores e, acima de tudo, impressionar o chefe de redacção. Normalmente, jantava lá em casa para conforto do estômago espalmado de fome. À hora conveniente, retirava-se, não sendo muito tarde, porque nem a minha avó, e menos ainda o meu avô, perdia de vista o gabiru não fosse fazer das que não se aprendem nos seminários, mas que não precisam de explicações.
Manhosices da natureza desta que relatei nascem de sistemas de exploração pouco dignos, fazendo que os explorados se defendam através do embuste. Para lá caminhamos, nos tempos que correm, a passos bem largos!

Nos anos de 1928 e 1929 – aqueles em que o meu pai foi repórter – a aviação vivia ainda a sua juventude e, entre nós, os oficiais pilotos aviadores eram heróis glorificados pela série de epopeias conseguidas por esses anos. O «café» Gelo, no Rossio, era o ponto de encontro de quase todos antes de embarcarem no comboio rumo à Amadora onde estava instalado o Grupo de Esquadrilhas de Aviação «República» (GEAR), unidade que já tinha, no seu palmarés, umas averbadas quantas façanhas aeronáuticas.
A relação entre aviadores e repórteres era excelente, porque dela poderiam vir bons resultados para ambas as partes; aos primeiros os segundos garantiam publicidade nas páginas dos jornais e estes ganhavam fama de aventureiros narrando as proezas em que tomavam parte. O meu pai deixou-se enredar nesta teia entusiasmante, mas foi por pouco tempo. Eu conto.
Certa manhã, no referido «café» do Rossio, um oficial aviador desafiou-o a irem até à Amadora para darem uma «volta» de avião. A novidade entusiasmou o meu progenitor, o sangue ferveu-lhe mais rubro nas veias e lá foi – à custa do oficial, claro – até ao GEAR. Não sei de que tipo de aeronave se tratava, só recordo que tinha dois lugares em tandem, sendo que no da frente ia o piloto e no de trás o meu pai.
Foram para a região da serra de Sintra e por lá o piloto quis mostrar as suas capacidades, fazendo acrobacia (não imagino que espécie de figuras) com voltas e reviravoltas apertadas. O meu pai não era homem de enjoar. O estômago – se calhar por hábito de estar vazio – a nada se comoveu, só que, em dado momento o meu progenitor inclinou-se para a frente e uma almofada do assento soltou-se e voou pelos ares. O aviador continuou até esgotar a sua perícia, regressando à Amadora. Quando aterraram e a aeronave se imobilizou, se calhar com ar irónico – que o meu pai não compreendeu, talvez por desconforto – perguntou-lhe o piloto: - Então você ainda está aí? Pensei que tinha caído lá na serra de Sintra!
A reportagem saiu no jornal, mas o meu pai passou a preferir os navios e o mar, que tão familiar lhe era, aos aviões pilotados por «gloriosos malucos».

Viviam-se os primeiros anos de censura prévia a qual afectava, em especial e em primeiro lugar, os jornais e os jornalistas (a rádio, nesses anos, estava a ensaiar os primeiros passos e só o teatro de revista fazia crítica social e política).
Dado que o Novidades se vendia de manhã, tinham de estar prontas as provas tipográficas por volta da meia-noite para as levar à comissão de censura e voltarem a tempo de, sobre a madrugada, se comporem os cortes e imprimir o jornal. Não era necessário empenhar neste trabalho todos os elementos da redacção; bastava que, até à hora do jornal sair para a rua, ficasse um redactor presente para estabelecer o entendimento com a comissão de censura e os tipógrafos, responsabilizando-se pela introdução dos cortes e respectiva reordenação das colunas. Para este serviço havia uma escala que obrigava todos os jornalistas ou, pelo menos, os mais jovens e com menores responsabilidades. Escusado será dizer que o elemento destacado para ficar de turno quase aguentava as vinte e quatro horas do dia acordado e a trabalhar. Quando algo corria mal na edição, por não ter sido introduzido o corte da censura, lá ia o desgraçado, em vez de repousar para casa, passar o resto da manhã em interrogatório na toda-poderosa comissão.
O meu pai, por duas vezes, foi chamado à censura. A primeira teve origem em uma qualquer falha de somenos importância, mas a segunda resultou da saída sem cortes de um artigo de fundo sobre o aumento do gás de cidade (estou a reproduzir de memória o que ouvi). Ora, aconteceu que esse tal artigo tinha sido amplamente amputado e, por uma coincidência desastrosa, era da autoria do meu pai.
Depois de muito esperar para ser recebido e ouvido pelos responsáveis lá entrou e, como lhe foi possível, tentou justificar uma falha para a qual não tinha explicação que fosse além do muito cansaço com que estava a trabalhar. O censor, impávido, repousado, ufano da sua autoridade, rematou um longo discurso, avisando: - E tome atenção, se isto se repete vai deportado para as ilhas!
Extenuado, farto da petulância de um pequeno tiranete, o meu pai, com grande à-vontade retorquiu: - Isso não é assim tão mau, porque eu sou de lá!
Irado e frustrado, o censor grita-lhe: - Então vai para Cabo Verde!
Era assim a censura nos anos longínquos de 1927 e 1928.

Estava em Lisboa, também a estudar, com um pequeno apoio da família, um antigo companheiro do seminário, irmão daquele que, muitos anos mais tarde, haveria de ser bispo de Cochim e patriarca das Índias Orientais, D. José Vieira Alvernaz. Sabendo que o meu pai estava no Novidades logo se aproximou (era um homem de uma imensa estatura física que veio, poucos anos depois, a morrer tuberculoso… fruto das dificuldades de então!) e de novo retomaram a amizade que vinha de longe.
Por vezes – não tão raras como actualmente – os jornalistas eram convidados para toda a espécie de eventos sociais onde se serviam bebidas espirituosas acompanhadas dos salgadinhos da época e pequenas sanduíches. Sabendo das dificuldades do seu amigo Alvernaz, o meu pai conseguia para ele um passe de jornalista e os dois, literalmente, atacavam os comes e bebes como se fossem camelos em véspera de travessia do deserto. Mais perito neste tipo de reabastecimento era o Alvernaz que conseguia encher os bolsos com reservas para, horas mais tarde, voltar a saciar a fome.
Já o meu pai tinha casado e algumas vezes convidou o seu antigo condiscípulo para jantar lá em casa, frente a uma mesa farta.
O ex-seminarista Alvernaz morreu sem conseguir concluir o curso de Direito como tanto ambicionava.

Desgostoso do trabalho, miseravelmente pago, incapaz de continuar os estudos, o meu pai, certa vez deu com um anúncio oficial para ser publicado no jornal. Nele constava que ia abrir concurso para o curso de enfermeiro da Armada. Era condição mínima ter mais de 21 anos, não ter sido dado como incapaz para o serviço militar, não possuir maleitas ou deformações e estar habilitado, no mínimo, com o 2.º ano do curso geral dos liceus. Oferecia-se o posto de cabo-aluno com direito a farda de sargento, alojamento, ordenado, fardamento e alimentação. Ao fim de três anos o candidato, tendo obtido aprovação, receberia as divisas de segundo-sargento.
Não seria advogado, nem jornalista, nem poeta – tudo coisas pelas quais tinha lutado – mas seria enfermeiro, profissão que jamais estivera no horizonte da sua imaginação. Tinha, até, uma certa aversão aos hospitais, mas tinha-a maior à fome e às dificuldades financeiras.
Concorreu à Armada. Foi admitido e cortou de vez as amarras que o ligavam ainda a um passado de preparação para eclesiástico.

Uma nova página estava virada na sua vida. Havia que a preencher da melhor maneira.

domingo, maio 6

4 - No centenário do meu Pai



Retomando o relato mais ou menos biográfico do que foi a vida do meu pai, pouco ou nada posso dizer quanto a pormenores do tempo que passou no seminário de Angra do Heroísmo. O que sei, são elementos dispersos, não contextualizados. Contudo, creio que valerá a pena deixá-los aqui, pois servirão, no mínimo, para ajudar a traçar uma fotografia – incompleta e de maus contornos – do que era a vida de um seminarista no começo do século xx, pelas décadas de 10 e 20, na ilha Terceira.

Segundo parece, logo nos primeiros tempos de integração nos estudos secundários, o meu pai começou a demarcar-se dos restantes colegas pela sua natural capacidade de estudo e aprendizagem. Deve dizer-se, no entanto, que era maior a sua apetência para as humanidades do que para as ciências exactas; as matemáticas, as físicas e as químicas que se estudavam no seminário – já de si poucas em dimensão científica e em profundidade de conhecimentos – não o atraíam. Deleitava-se com a aprendizagem da Língua Portuguesa, do Latim, do Francês, da Literatura (naturalmente condicionada pelas restrições institucionais do estabelecimento que frequentava).
Foi depois do 5.º ano (equivalente, agora, ao 9.º de escolaridade ainda que diferente em conteúdos) que se terão manifestado as tendências poéticas do meu pai. Admito isto com base no facto de não lhe conhecer qualquer texto manuscrito de entre o que deixou como espólio. Foi no despontar da adolescência que as musas o terão inspirado.

O meu pai sempre foi um bom conversador, extrovertido sem exageros, naturalmente popular. Estas suas características contrastavam com as de um primo direito, de nome José Luís, um pouco mais velho, que frequentava, também, o seminário – dois ou três anos mais à frente – tendo acabado por ser ordenado padre. Este era sorumbático por natureza, embora poeta e grande orador sagrado. Não tão brilhante nos estudos quanto o meu pai, tinha, contudo, maiores certezas quanto à sua vocação sacerdotal.

Quando ainda estudantes, nas férias de Verão, vinham passar o merecido repouso escolar à Fajã Grande. De manhã, a sua obrigação era assistirem à missa, acolitando o pároco da freguesia. Para tanto, vestiam-se com casaco e calça negra e camisa de cabeção gomado, cobrindo a cabeça com o regulamentar chapéu de feltro negro também. Como seminaristas tinham o dever de se distinguirem dos conterrâneos que trabalhavam na terra para ganharem, com o suor do rosto, o pão que haviam de servir em casa. Afinal, a sua seara era outra e para pastores se preparavam.
Acabada a missa, era usual irem ambos dar um passeio pela rua Direita e Via de Água, rondando pelo porto velho, o porto novo, rumando à Tronqueira. Era curto o passeio, mas dava para falar um pouco de tudo – mais o meu pai, que o outro limitava-se a ouvi-lo com ponderado silêncio. Pelo caminho iam encontrando este e aquele que o meu progenitor prontamente cumprimentava com efusão.
Certa vez, lá para as bandas do porto velho, depois de terem cruzado com um conterrâneo, perguntou o meu pai ao primo José Luís: - Ora diz-me cá uma coisa! O teu chapéu terá sido mais caro do que o meu?
Espantado, arrancado aos seus profundos pensamentos, o bom José Luís respondeu: - Não, Manuel Luís. Por certo, não foi. Mas qual a razão de tal pergunta agora?
- É que eu tiro o meu para cumprimentar esta gente que por nós passa e nos dá a saudação e tu nem o gesto fazes para fingir que vais tirar o teu, daí julgar que alguma diferença teriam os nossos chapéus!
Era assim, o meu pai! Espontâneo, franco, aberto ao mundo e aos outros.

No seminário ficaram famosas, durante alguns anos, as sabatinas nas quais participou. Era ágil nas respostas e sabia esgrimir os ataques oratórios, dando forma a um raciocínio rápido, sagaz, de aguda perspicácia para descobrir os pontos fracos do oponente. Para ele a Lógica e a Retórica andavam de mãos dadas de modo a servirem-se mutuamente. Desta forma, passados os primeiros anos, granjeou fama no seminário e o estatuto de bom estudante permitiu-lhe entregar-se a leituras mais profundas e afastadas dos temas programáticos. Pelos dezassete ou dezoito anos tinha, até, permissão para, depois de cumpridos os deveres religiosos, frequentar certos círculos literários e tertúlias de Angra do Heroísmo. Foi então que conheceu Vitorino Nemésio acabado de chegar de Paris. Nunca foram íntimos, mas tê-lo-iam sido se outros caminhos a Vida tivesse proporcionado ao meu pai. Contemporâneo e integrante das mesmas tertúlias foi Dutra Faria – que mais tarde se tornou notável, em Lisboa, pelo incondicional e sabujo apoio que deu ao Estado Novo.
Uma tertúlia e grupo literário que na época tinha relevo na velha cidade dos capitães-generais, sede de bispado dos Açores, era a de Os Prelúdios, revista mensal que publicava os trabalhos dos estudantes de Angra, mais dados às letras. Por detrás dela estava o poeta Gervásio de Lima, natural da Terceira, e, entre outros, Serafim de Chaves, distinguido nos jogos florais de 1924, que chegou a oferecer ao meu pai um pequeno livro de poemas com dedicatória bastante lisonjeira.
Para além das influências locais e da época, como poeta, o meu progenitor leu, de certeza absoluta – por ainda conservar em meu poder exemplares autografados – António Feliciano de Castilho, Almeida Garrett, Ramos Coelho e António Correia de Oliveira, para não referir, por ser demais evidente, Luís de Camões e Bocage.

Julgo que os anos de maior intensidade produtiva, enquanto poeta, na fase final da adolescência, terão sido entre 1924 e 1926; frequentaria, então, o oitavo ano do seminário. Tinha já recebido, nessa altura, as chamadas ordens menores ou primu tonsura, havendo passado do chamado ano filosófico para o nono e último do curso durante o qual os estudos se viravam para a Teologia.
A vida religiosa no seminário não era fácil e exigia sentido de disciplina. O meu pai ou tinha-o por estrutura natural ou por o haver adquirido com o treino e rigor que a si próprio sempre impôs. Foi nos jejuns e abstinências que adquiriu capacidade para se alimentar frugalmente, faculdade que bons serviços lhe prestou, alguns anos mais tarde, como à frente relatarei.

No fim do primeiro trimestre do nono ano, por altura do conselho escolar, o primo José Luís, já então sacerdote e professor de canto coral no seminário, avisou o meu pai de que havia ficado decidido enviá-lo para Roma após a conclusão do curso, em Setembro, para frequentar a Universidade Gregoriana e ali obter a licenciatura em uma das várias áreas por lá ministradas. Os custos seriam suportados pela diocese de Angra já que os meus avós não possuíam rendimentos suficientes para manter um filho tão longe de casa.
Em face desta nova e inesperada situação o meu progenitor teve um rebate de consciência, pois não admitia ir gastar tanto dinheiro à diocese quando, efectivamente, tendo vocação para ser seminarista não a tinha para ser padre e ir para Roma conseguir uma licenciatura para, depois de estar na posse de um diploma, se desvincular da vida sacerdotal. Era, segundo o que me afirmou, uma desonestidade que não calhava com a sua maneira de ser e de proceder.
Depois de ponderar com cautela a atitude a assumir, resolveu dar a conhecer junto dos responsáveis eclesiásticos a decisão de abandonar o seminário pelas razões que relatei. O bispo de Angra – que o ouviu atentamente – para além de lhe elogiar a honestidade, considerou que se tratava de uma crise passageira e que, por isso, poderia contar com o apoio da Igreja Católica onde estivesse e necessitasse, pois, é necessário esclarecer, nessa altura, por força do anticlericalismo republicano, o Estado não reconhecia qualquer habilitação literária aos ex-seminaristas. Desta forma, o meu pai nada mais possuía do que o exame da 4.ª classe feito com distinção!

Dada, por carta, a notícia para casa respondeu-lhe, na volta do correio, a mãe – em longa epístola que ainda guardo – que se considerasse órfão a partir daquele momento!
A sensação de frustração provocada na minha avó foi brutal, incapacitando-a de compreender um acto de honestidade do qual só se deveria orgulhar, mas a vaidade humana é uma terrível armadilha e ter um filho padre era, naqueles anos, um motivo de prestígio social e uma excelente solução prática para quem vivia tão longe de tudo, pois poderia tornar-se no pilar de sustentação das irmãs, levando-as para as paróquias onde fosse exercer o múnus sagrado. Tal como era hábito na época, uma, ficar-lhe-ia a cargo em permanência para o servir e governar a casa paroquial; às restantes ser-lhes-ia fácil encontrar marido com posição a condizer com o exercício sacerdotal do futuro cunhado. Sonhos e soluções construídos no vazio ruíram com a decisão inabalável do meu pai.

Da ilha Terceira partiu para Lisboa, com uma pequena mala de roupa, uma carta de recomendação do bispo de Angra e alguns cobres doados pelos professores do seminário. Vinha ao encontro de novas e bem mais duras realidades. Corria o ano de 1927. A ditadura militar estava no auge, o custo de vida disparava para valores assustadores, as assembleias de militares – em particular as dos tenentes – impunham condições aos ministros que procuravam gerir a situação, agradando a uns e a outros.
A carta recomendava a aceitação do meu pai como professor num colégio particular, dirigido por um laico, mas realmente dependente do patriarcado. Era o Colégio Liceu de Sintra, a funcionar num lindo palacete na zona de S. Pedro, no começo da encosta da serra. Seria pequeno o salário, já que receberia alojamento e alimentação em troca de dar aulas de Língua Portuguesa e da inscrição nos exames do Liceu Pedro Nunes, em Lisboa, quando fosse tempo de os fazer.
Situação paradoxal e complexa: ser mestre e colega dos alunos a quem ensinava. Só assim conseguiria habilitações oficiais que lhe dessem a possibilidade de prosseguir estudos superiores. Esse era o sonho.
As agruras da vida iam começar, dando corpo ao soneto premonitório que um ano antes havia publicado, com o pseudónimo de Manuel Avelar, em A Mocidade, ainda em Angra.

Nosso viver é árduo sofrimento
Que atinge a alta nota da tristeza;
Vai minando veloz e com largueza
As ilusões, deixando o desalento…

Pois se a vida é um sonho de incerteza
- Como de espr’ança pode haver contento?
Nela encontrar podemos, só, aumento
De triste desengano e de torpeza…

Como qual borboleta entontecida
Que vagueia contente, de flor, em flor,
Assim é nossa vida de amarguras!

Pois pretende e procura, esvaecida,
O remédio que só em ti, Senhor,
Se encontra, para as nossas desventuras…

Foi nesse ano de 1927, no Colégio Liceu de Sintra, numa festa lá acontecida, que o meu pai conheceu a minha mãe. O enamoramento foi discreto, mas imediato. Ele ainda não tinha feito vinte anos e nem ela os dezanove. Por estranha coincidência, também a minha mãe nascera a 4 de Dezembro.
Uma nova etapa da vida do meu pai estava a começar.

terça-feira, maio 1

3 - No centenário do meu Pai



Todo o filho, diz-se, é uma bênção para a sua mãe (infelizmente nem sempre foi assim ao longo dos tempos, porque, o principal é que seja desejado).
O meu pai, para além de uma bênção, foi uma excelente prenda para a minha avó, pois, num tempo e numa localidade em que os aniversários natalícios correspondiam só e somente ao dia em que se completava mais um ano de vida, ela foi mãe pela primeira vez. Mãe do meu pai. Foi no dia 4 de Dezembro de 1907. Fazia, então, 22 anos.
Natural da Fajã Grande, o seu nome de solteira era Maria Dias de Avelar. Pelo casamento com o meu avô, deixou “cair” o sobrenome Avelar e ficou Maria Dias de Fraga. Eu e a minha irmã – continentais e lisboetas – conhecíamo-la por avó Dias, ao contrário dos meus primos que sempre a trataram por avó Fraga.
Ao meu pai, no dia do baptizado – altura em que se procedia ao registo do nascimento, como era comum na época – foi posto exactamente o mesmo nome do seu pai, Manuel Luís de Fraga, por isso foi Júnior. Por ter sido o primogénito, esqueceram-se de lhe colocar o sobrenome da mãe. Não sei exactamente qual o motivo, mas o certo é que se encarregou de corrigir o lapso e, ao longo da vida, adoptou, em muitos dos seus escritos jornalísticos e poéticos, o pseudónimo de Dias Avelar.
Nasceu saudável, robusto e com físico para sobreviver à mortalidade infantil da época. Trazia só um pequeno defeito: na mão esquerda, a meio da falange do dedo mínimo, tinha implantado um outro que não articulava. Era uma excrescência desnecessária e inútil. A minha avó – e isto dá bem a noção da força e da coragem daquela mulher – com uma tesoura desinfectada, quando o meu pai ainda tinha poucas horas de nascido, procurou o ponto ósseo de inserção do dedo desnecessário e cortou cerce o que estava a mais. Fez-lhe um penso com os unguentos da época, e entregou à graça de Deus – como naquelas ilhas era costume dizer – a cura da amputação feita. Rapidamente sarou e o que ficou foi um pequeno alto semelhante a uma verruga… coisa que nem se notava!
Na freguesia não havia médico e se houvesse na ilha, estaria em St.ª Cruz, a muitas horas de viagem pelo belíssimo interior, os chamados matos.

Cresceu saudável o meu pai, até ter sarampo, que curou com os cuidados tradicionais, mas que, por sua culpa – foi brincar para o chafariz fronteiro à casa paterna – na fase de convalescença, lhe trouxe uma bronquite asmática da qual nunca mais se livrou, embora eu não tenha assistido a qualquer crise de falta de ar, por razões que mais à frente relatarei.
A vida do casal – Maria e Manuel Luís – corria lenta e ao ritmo do trabalho rotineiro, mas o meu avô era um homem de ambições; viver das poucas terras que possuía não lhe agradava e essa foi a razão que o levou a, depois de novamente engravidar a minha avó, partir para os EUA, em busca do pecúlio que lhe daria para mudar o estatuto herdado. Foi, e só voltou cinco anos depois. Em 27 de Março de 1909 nasceu a minha tia e madrinha a quem a mãe pôs nome igual ao seu – Maria Dias de Fraga. Ficaram os três a viver na Fajã Grande do dinheiro que chegava da Califórnia, do peixe pescado no mar, logo ali ao fim da rua, da carne do porco que na pocilga comia batata branca e os restos das refeições da família e das rendas das terras que o casal tinha suas. Não sendo fácil, também não era preocupante o dia-a-dia.

O meu pai habituou-se a ter toda a atenção da mãe nesses cinco anos que lhe terão parecido uma vida longa. Os três entendiam-se maravilhosamente e a minha avó era pessoa dada a falar – o que estava no extremo oposto do marido, que só abandonava os seus longos silêncios por necessidade ou por achar conveniente – facto que terá, para além dessa coisa maravilhosa que se chama genética, desenvolvido no meu progenitor o saudável hábito de conversar, colocando-o nos antípodas da postura paterna. Nos seus cinco ou seis anitos, o menino Manuel Luís deixava as senhoras – novas e velhas – da freguesia verdadeiramente extasiadas tal era a sua desenvolta oratória. Achavam-lhe graça e era já tido por uma criança inteligente.

O regresso do pai, vindo dos EUA, foi para ele um pequeno choque que sempre referiu ao longo da vida. De repente era substituído por um cavalheiro, chegado não sabia de onde, perante quem havia de estar calado, guardando um silêncio respeitoso. E tinha de lhe chamar pai! Adaptou-se a custo.

Ia a caminho dos sete anos e, pelo mês de Março, nasceu-lhe outra irmãzinha a quem se prendeu com grande ternura.
É curioso que entre ele e Maria havia a cumplicidade dos anos em que haviam sido o alvo de todas as atenções da mãe. Dele para Águeda – assim foi baptizada a terceira descendente do casal Fraga – havia um grande carinho, a ponto de me recordar ter ouvido o meu pai afirmar ser aquela era a sua irmã favorita.
De todos os restantes irmãos – mais três – eram as duas que se lhe seguiam em idade as que tinham permissão de o tratar por tu… aos outros estava reservado o distante e cerimonioso tratamento por senhor! Foi muito cedo que o meu pai desenvolveu um fortíssimo sentido de autoridade e respeito.

Por essa altura – em 1914 – terá ido frequentar as aulas do velho professor de letras e números que habilitava com o exame da chamada 3.ª classe. Era, segundo recordo ouvir contar, um bom homem, distraído, que muitas vezes procurava por todo o lado, com grande afã, os óculos de ver perto, afinal deixados na testa por distracção. Nessas alturas as risadinhas dos gaiatos eram incontidas na pequena sala onde todos iam aprendendo o modo de conhecerem o mundo sem saírem daquele lugarejo perdido nas lonjuras do Atlântico. Manuel Luís sabia as lições, destacando-se dos outros seus companheiros.
Aos domingos, quando toda a família ia, enfarpelada a rigor, assistir à missa, o primogénito chegava a casa e repetia, para quem o quisesse ouvir, o sermão do celebrante, quase tintim por tintim, com todas as explicações bem percebidas e sabidas. O petiz era, realmente, fora do comum. Contudo, isso não o livrava dos pequenos trabalhos agrícolas que uma criança podia executar: carregar com os fardos de feno para fazer a cama das vacas, entretanto compradas com as economias trazidas da Califórnia. Mas não só para vacas deu o labor de cinco anos nos EUA.
O meu avô, para além de adquirir terras de lavoura, mandou construir duas azenhas, que ainda lá estão – uma a seguir à outra – na ribeira das Casas. Isso deu-lhe estatuto na freguesia e na ilha, pois passou a pertencer ao pequeno grupo de cidadãos pagantes de contribuição industrial. Não se alterou a vida da família, mas o desafogo era maior.

No ano de 1917, a 7 de Outubro, nasceu o primeiro irmão do meu pai: o tio Tobias, o último a falecer, com a idade de oitenta e oito anos. Estaria, por essa altura o meu progenitor a acabar a 3.ª classe e não mostrava grande vontade, nem empenho, nos trabalhos agrícolas ou de moagem.
O padre da paróquia, vendo-lhe a inteligência no olhar, sugeriu que a criança fosse a St.ª Cruz submeter-se ao exame da 4.ª classe para, mais tarde, poder ser admitido no seminário de Angra do Heroísmo. Estava ali, quase pela certa, uma vocação sacerdotal. Semelhante parecer era o do mestre-escola que o achava habilitado para se sujeitar à «dura» prova a fazer na vila.
Em face de tantos conselhos e pareceres e sob os rogos da minha avó, lá se dispôs o Manuel Luís Sénior a levar o seu rebento até St.ª Cruz. Era a primeira vez que o meu pai saía para tão longe da sua terra natal.

Para chegar à vila havia que atravessar a ilha de lés a lés e todo o percurso era feito a pé. Na ida, pai e filho não trocaram entre si qualquer palavra. Depois de se alojarem em casa de familiares, na manhã seguinte, o meu pai fez as provas que lhe cabiam.
Devo dizer que tais exames constituíam um acontecimento, naquela época, mesmo na vila de St. ª Cruz: tratava-se de uma efectiva mudança de estatuto e só a ela se sujeitava quem se destinava a continuar os estudos fora da ilha das Flores.
Segundo parece, a pequena sala de aulas da escola encheu-se com curiosos que queriam avaliar das qualidades do pretendente a «gente letrada». Foi brilhante a prova oral e o meu pai saiu aprovado com distinção.
Se a honra era grande para o candidato menor não era para os familiares, pois passavam a contar com alguém com um diploma só obtido na sede do concelho. Todos os conhecidos e parentes felicitavam o meu avô pelo brilhantismo do meu pai.
No regresso, mais seguro de si, o pequeno Manuel Luís optou por conversar com o seu sisudo progenitor. Falaram mais alto os genes maternos e a vaidade da pequena grande vitória. Iam largos os quilómetros andados e o que devia ser um diálogo não passava de um longo solilóquio bruscamente interrompido pelo meu avô que, com secura, disparou:
- Passado com distinção… Como se isso valesse alguma coisa!
Emudeceu o meu pai e toda a satisfação teve de ser guardada para a manifestar quando estivesse com a mãe.
Muitos anos mais tarde, relembrando o episódio, dizia-me que, na altura lhe custara a quase crítica do pai, mas, recordando-o tal qual ele era, sabia, então, a imensa satisfação que lhe havia dado e, acima de tudo, o orgulho que lhe proporcionara por chegar à Fajã Grande e, na roda das conversas dos homens e pais, ser alvo de atenções de todos que o felicitavam. O nível de exigência do meu avô era muito grande – para si mesmo e para os filhos!

Depois de conseguido o diploma oficial de aprovação na instrução primária podia o sacerdote da Fajã tratar de tudo para o ingresso do pequeno Manuel Luís no seminário de Angra. Corria o ano de 1918.
A despedida foi difícil, dolorosa, mas cheio de esperança em si e desejoso de descobrir novos horizontes, lá partiu o meu pai para a ilha Terceira. Com ele levava os sonhos da mãe para quem a vaidade de ter um filho padre era maior que tudo, pois ser sacerdote da Igreja Católica naqueles tempos – mesmo levando em conta todo o anticlericalismo da República – era, nos Açores, possuir um elevado estatuto social pelo ascendente que se passava a ter sobre os paroquianos. Além de tudo o mais, muita gente tinha a certeza da excelente figura que o Manuel Luís ia fazer no meio estudantil de Angra do Heroísmo.

Não sei se o sacerdote da Fajã Grande que tanto papel teve na entrada do meu pai no seminário se chamava Francisco Vieira Bizarra, mas presumo bem que sim, pois encontrei publicado no jornal O Florentino, datado de 1924 (talvez escrito em Março), este soneto dedicado à sua memória onde se pressentem, na temática, as influências de Camões e o peso de uma infantilidade que outros mais tardios já não têm:

Guiavas tu bondosa e docemente,
O rebanho que te fora confiado,
Como faz bom pastor com alegria
Às ovelhas que conduz ao prado

Mas a morte cruel, impiedosa,
A ninguém no mundo há que isente,
Levou-te d’entre nós, levou-te ao Céu,
Onde repousarás eternamente

Sim!... no céu onde subiste descansa,
Mas de nós nunca percas a lembrança,
Junto a Deus que por nós intercede

Pede-lhe para o teu rebanho
Um manancial de graças tamanho
Onde, de amor, sacie a sede.

Tendo procurado entre o seu espólio escrito, este soneto é o mais antigo que encontrei, mas não acredito que só aos dezassete anos haja iniciado as suas tentativas literárias. Por certo, terá rabiscado as primeiras quadras bem mais cedo. O estudo das humanidades e da literatura ter-lhe-ão mostrado que, afinal, as saudades da terra, da família e dos lugares que estimava podiam ser expressas em frases curtas, com rima e métrica. Mudou-lhe a Vida certos hábitos, mas não lhe destruiu a alma de poeta.