quinta-feira, dezembro 4

Um doce centenário


Passou um ano sobre a última data em que aqui escrevi! E havia prometido a mim mesmo voltar em pouco tempo para continuar a prestar a justa homenagem ao meu saudoso Pai…
Diz o rifão popular que os homens põem e Deus dispõe. É certo que foram tantas as coisas que tive de fazer nestes pretéritos doze meses que, embora lembrando-me, ia sempre remetendo para a semana seguinte a escrita de um memória que se perderá quando eu fechar os olhos. Tenho, todavia, a consciência de que todos os impedimentos levantados durante este ano foram de tal natureza que, esteja o meu Pai onde estiver, se sentirá orgulhoso dos meus feitos. Foram coisas de pequena monta, julgo eu, mas tiveram a dimensão dos princípios colhidos no lar paterno. Foi, certamente, isso que as valorizaram aos olhos de uma luzinha perdida na imensidão dos mundos que imaginamos para além deste onde vivemos; uma luzinha à qual chamo espírito do meu Pai. Ele viu e sentiu, em uníssono comigo, os motivos impeditivos de cumprir a promessa feita há um ano.

Por uma feliz e rara coincidência os meus progenitores nasceram no mesmo dia, embora a minha Mãe fosse mais nova doze meses do que o meu Pai.
Passa hoje o centenário do nascimento da minha saudosa Mãe.
Todos os dias me assalta, uma, duas ou três vezes, à memória a lembrança dela. Entre nós havia laços muito fortes que nos amarravam de um modo muito especial. Laços inexplicáveis, mas sensíveis.

Tudo começou no início da gravidez.
A minha Mãe sofria (isto há 68 anos!) de um aperto mitral. Tratava-se uma doença cardíaca que, para os recursos da época, era grave, muito grave. Tinha, depois do nascimento da minha Irmã, sete anos antes, aumentado de peso e esse facto, associado à deficiência que a atormentava, criara um panorama sanitário que desaconselhava, à partida, a gravidez. O parto poderia ser fatal. Mas a minha Mãe, com uma coragem que só se encontra na abnegação de quem transporta em si a Vida, quis correr o risco. Contra o conselho clínico, ela levou por diante a gravidez e, passados os nove meses usuais, nasci eu de um parto muito difícil e doloroso.

Se todos os filhos agradecem às mães a existência eu tenho muito mais para agradecer. E creio que tive, logo em criança, a percepção da necessidade de desenvolver uma entranhada gratidão à minha Mãe. Por ela sacrificava todos os meus pequenos desejos juvenis; para a ouvir cantar abdicava de folguedos distantes do sítio onde ela estava. Formávamos um só!
Embora tendo um coração doente, a minha Mãe sabia nele albergar amor para todos nós… Para o meu Pai, para a minha Irmã e para mim! E estabelecia excelentes relações sociais, não passando pela má-língua, nem pela intriga. Gostava de falar sobre o seu passatempo favorito: o crochet.

Tinha eu seis anos, mal se conhecia e não se usava ainda a penicilina em Portugal, adoeci com uma febre tifóide. Durante um mês estive às portas da morte, com temperaturas superiores a quarenta graus. Nesse tempo, a minha Mãe, dormiu todas as noites ao meu lado, sem se despir, pronta para me socorrer, dar água e líquidos, únicos alimentos que podia ingerir. Se por ter nascido lhe devo a vida, de novo, aos seis anos, lha devo. Foram os seus cuidados – e os do meu Pai, também – que me fizeram vencer a parca quando as forças me faleciam em absoluto.

Prendiam-nos – a mim e a ela – laços invisíveis, mas, desde criança, quando estava junto da minha Mãe, era frequente, muito antes de se sentir mal, por causa de qualquer descompasso cardíaco, eu pressentir-lhe a dor e perguntar pressuroso: - Mamã, o que é que tens? E ainda vinha longe o mal-estar já eu me sintonizava com ela. Era algo de natural entre nós!

Os anos foram passando e a ternura daquele maternal amor adaptou-se ao meu crescimento masculino. Eu continuava a ser o seu “menino”, mas ela foi aprendendo a ver-me como um jovem e, depois, um homem. Hoje, com os cabelos encanecidos pela idade, experiente do que é viver e perder, penso, muitas vezes, como lhe terá sido difícil separar-se e esconder a doçura dos sentimentos que os filhos crianças geram em nós!

Viu-me ingressar, aos treze anos, no Instituto dos Pupilos do Exército – bem contra sua vontade – ficando obrigada a uma separação física que lhe doía; viu-me ir para a guerra por duas vezes – e, então, ficámos os dois de corações partidos; viu-me regressar; viu eu dar-lhe dois netos. Viu… E, cada vez mais fraca, foi-se apagando como uma vela que chega ao fim. Partiu de repente, num segundo (conforme me contaram), contudo nessa hora, nesse momento derradeiro, ia eu na rua, já estava escuro, tive uma dor fortíssima na zona da vesícula – como nunca tivera antes, nem voltei a ter; encostei-me à parede de um prédio e vi as horas. Fixei-as. Mais tarde, confirmei; tinha sido esse o instante em que a minha Mãe havia dado um grito e caído morta em cima da cama de dormir. Cortaram-se, para sempre, os laços invisíveis que nos ligavam. A morte dela passou por mim e avisou-me.

Lá onde estás, minha querida Mãe, sabes que, aqui, vou sentindo, em cada dia, as saudades, mas, mais do que elas, a doçura do teu olhar que não esqueço. E tu, eu sei, continuas a velar por mim, tal como aquele anjo da guarda que me ensinavas existir quando eu era criança.
Repousa, meu querido Anjo. Repousa em paz, enquanto o meu espírito foge para junto do teu.