quinta-feira, junho 15

Acasos da História

Na madrugada de 9 de Abril de 1918, na zona de Lille, o Alto Comando alemão deu início a uma ofensiva de grande envergadura sobre o cansado Corpo de Exército Português (CEP), nessa altura já só na frente com uma Divisão — a 2.ª — bastante desfalcada de efectivos e com o moral muito destroçado.
Contam-se pelos dedos das mãos o que se tem escrito de original sobre a célebre batalha do Lys — assim passou à História a designação da ofensiva germânica — de tal forma que as gerações mais novas e menos informadas julgam, no dia 9 de Abril de cada ano, estar a festejar-se uma vitória dos Portugueses na Grande Guerra ou, também chamada, 1.ª Guerra Mundial. Redondo erro. Festeja-se o tremendo sacrifício dos nossos soldados para servirem uma política de intervenção nos magnos problemas europeus do início do século XX. Olhando de uma forma mais rebuscada e erudita essa batalha, embora seja uma derrota militar, pode ser interpretada como a vitória por se terem alcançado os objectivos pelos quais Portugal entrou no conflito. Mas contar essa trama da diplomacia e dos políticos de 1916 era percorrer um complicado caminho que não cabe na dimensão deste apontamento. Seja como for, para não deixar em suspenso os meus leitores, dir-lhes-ei apenas que o ataque alemão foi de tal monta que, depois de ter levado de vencida as pobres tropas portuguesas, engoliu Divisão atrás de Divisão do exército britânico até ao dia 25, data na qual se susteve a arremetida, depois de terem o hunos conquistado uns quantos quilómetros de frente aos Aliados.
As maiores baixas nacionais não se traduziram em mortos, mas em prisioneiros; qualquer coisa como 6.585 homens. A explicação para tal número é simples: esperando ser atacados pela frente, os Portugueses foram colhidos pelos Alemães num ataque pela retaguarda, pois os flancos, defendidos pelos Ingleses cederam e deram passagem aos germânicos. Toda a resistência era inútil, por já estarem desfeitas as defesas. O prisioneiro com mais elevada graduação militar foi o tenente-coronel Craveiro Lopes, pai daquele que viria a ser, muitos anos mais tarde, presidente da República.
Separados os oficiais dos sargentos e praças lá seguiram os dois grupos para campos de concentração diferentes onde pouco diferia o tratamento. Em abono da verdade, devo dizer que são reportados poucos casos de brutalidade física, contudo, o mais significativo foi o muito frio que passaram — tiveram de viver com a roupa que tinham no corpo — e a muita fome.
Ora — e vem agora o acaso que dá o nome ao apontamento — os prisioneiros, depois de separados, não se dirigiram todos para os mesmos campos, na Alemanha; houve quem fosse parar ao Norte do país e quem ficasse logo ali pelas proximidades da Bélgica. Calhou que um pobre praça, jovem de vinte anos, malhasse com o corpo em um campo de concentração situado em Münster, onde havia, pelo menos mais dois campos. Por lá ficou a tiritar de frio e catando baguinhos de arroz, cascas de batatas e umas ervitas que metidas em água a ferver sempre ganhavam uma vaga semelhança com sopa. Quando a fome apertava, segundo me contou um dos seus netos, por o ter ouvido contar ao avô, se conseguiam apanhar um rato do campo cozinhavam-no também, depois de esfolado e esventrado. Ao que parece, a carne deste tipo de roedores é rica em vitamina C.
O nosso soldado, após o armistício, foi repatriado, regressou à terra — no Norte de Portugal —, casou e teve filhos. Um deles, muitos anos depois, pelo final da década de 50 da centúria passada, emigrou para a Alemanha e, não é que o acaso o levou para Münster?! Ali amealhou o suficiente para poder, mais tarde voltar à sua terra e ali lhe nasceu o filho que me relatou o cativeiro do avô.
A roda da Vida tem coisas estranhas... No mesmo local onde um homem sofreu fome os seus descendentes vão encontrar a fortuna e o bem-estar. Será por Portugal, há quinhentos anos, ter sido um reino rico, famoso e cheio de poder que nós hoje estamos na cauda da Europa?

sexta-feira, junho 9

Sair das trevas

Sair das trevas
Portugal enquanto Estado, enquanto unidade política autónoma foi fruto da vontade de uma elite poderosa, senhora das terras entre Douro e Minho e cobiçosa dos vastos territórios entre Douro e Mondego.
Do reinado de D. Afonso Henriques, o primeiro dos monarcas portugueses, a D. Afonso III, seu bisneto, foi alargado o território até se atingir, a Sul, novamente o Atlântico. O rectângulo estava delineado; o mar limitava-o por dois lados e alguns rios por outros dois. Era difícil impor a Leão e Castela a perda de terras que já lhe pertenciam ou a que se julgavam com direitos naturais.
O terceiro dos Afonsos deixou o Algarve como fronteira austral. O reino estava dimensionado, unido, sem desavenças de maior, nem linhas fracturantes. Ao lado, estendia-se Castela governada pela mão cautelosa, prudente e conhecedora de Afonso X, aquele a quem a História denominou por Sábio. Era sogro de Afonso III e, por conseguinte, avô do varão herdeiro do trono de Portugal.
Em 1278, já velho e cansado da governação, Afonso III entrega a D. Dinis as rédeas do poder. Era o primogénito e a tal tinha direito, contudo, uma estranha situação esteve na origem do conflito interno que opôs o novel monarca ao seu irmão mais novo, também, Afonso. Vou passar a contar, em linhas tão largas quanto me for possível.
O pai de D. Dinis, irmão do rei D. Sancho II, havia casado, em França, com a condessa de Bolonha. Entretanto, D. Sancho II - rei dado à guerra e pouco à governação, pelo menos no sentido que o alto clero português dele esperava - completava a obra de conquista deixada em aberto por D. Afonso Henriques.
As queixas dos bispos, afrontados pelos representantes do soberano, chegavam a Roma e criavam junto da Santa Sé uma imagem de reino ingovernado. A intriga internacional, tecida entre Paris, Roma e Portugal, levou a que fosse olhado o infante D. Afonso de Bolonha como uma solução face à deposição ou afastamento de D. Sancho II. Foi isso que aconteceu. Mas o rei português contava com a aliança do rei de Castela.
A guerra civil acabou por ocorrer e só não teve maiores repercussões, porque o futuro Afonso X recuou perante a indicação que Afonso de Bolonha estava apoiado pelo papa. D. Sancho II, em 1248, morreu exilado na cidade de Toledo.
Afonso de Bolonha tinha agora todas as passagens abertas para chegar ao trono do seu falecido irmão. Em 1249, mandou conquistar o Algarve, também disputado por Castela. Esse foi o motivo da guerra entre os dois reinos iniciada logo no ano seguinte. Em 1253 o papa consegue que seja assinada a paz, obrigando-se D. Afonso, agora III, a casar com uma filha de Afonso X de Castela. Era ainda viva a condessa de Bolonha que ficara em França. Do matrimónio com a castelhana nasce D. Dinis e depois D. Afonso. Contudo, este viu a luz do dia já depois da morte da condessa de Bolonha. Assim, para efeitos morais e legais, o primogénito é D. Afonso e não D. Dinis, porque este era filho do pecado por o pai ser, à data do seu nascimento, um bígamo.
Tal é a justificação para, em 1281, se iniciar uma guerra civil entre os dois irmãos. Como se sabe saiu vencedor o rei D. Dinis. No entanto, é preciso ter presente que a explicação anterior é curta e não dá para tapar toda a verdade. Com efeito, a revolta de D. Afonso contra o primogénito escondia o facto de o infante estar a ser utilizado pelos grandes senhores do reino para imporem a sua vontade ao novo soberano, fazendo dele um mero joguete para satisfação das suas desmedidas ambições. A vitória de D. Dinis e a subordinação de D. Afonso tornaram-se determinantes na contenção dos desejos da grande nobreza do reino.
Foi no ano em que a paz interna se restabeleceu que D. Dinis casou com D. Isabel de Aragão. Não se tratou, por certo, de um matrimónio desinteressado. Realmente, até o reino de Aragão ser absorvido por Castela, ele foi o aliado privilegiado de Portugal, porque, desta maneira, se conseguia, estrategicamente, empalmar o reino vizinho entre duas potências peninsulares.
Julgo que posso afirmar ter sido D. Dinis o primeiro príncipe herdeiro da coroa portuguesa, na primeira dinastia, a receber uma educação verdadeiramente voltada para a função que iria ocupar. Em minha opinião, isso dever-se-á ao cosmopolitismo de D. Afonso III, adquirido nos anos que viveu na corte francesa. A saída da Península e a passagem dos Pirenéus abriu-lhe horizontes que os seus familiares desconheciam. O facto de ter organizado uma estadia de D. Dinis, ainda infante, na corte do seu avô, Afonso X, faz-me crer que, na impossibilidade de lhe oferecer um panorama cultural de horizontes mais amplos, deu-lhe o convívio com o rei Sábio, esperando assim compensá-lo da estreiteza de vistas de um Portugal afastado dos centros da coeva modernidade europeia. E não foi em vão que assim acautelou o futuro do seu herdeiro.
D. Dinis, que reinou quarenta e seis anos, foi um poeta exímio para o seu tempo, escrevendo tanto cantigas de amigo como cantigas de amor e de escárnio ou maldizer. Tais dotes ficaram atestados para a posterioridade em vários manuscritos medievais.
Nem só a compor obra poética viveu este soberano; a ele se deve a plantação do pinhal de Leiria - que, mais de um século e meio depois, se tornou a grande fonte de madeiras para a construção naval - preocupado em travar a progressão das dunas e dos pântanos que caracterizavam a paisagem original da zona.
Os cuidados com a agricultura valeram-lhe o cognome de o Lavrador¸ poderia ter sido o Poeta ou, até, o Educador, pois foi em 1290, na vigência do seu reinado, que oficialmente a Santa Sé reconheceu a fundação da Universidade de Lisboa, então designada por Estudo Geral. D. Dinis deu provimento ao pedido dos clérigos e fê-lo avançar para Roma porque boas eram as justificações apresentadas: quem, em Portugal, quisesse ilustrar-se não tinha como pois só aos estudos monásticos e às escolas claustrais poderia recorrer, ficando-se pelo mais elementar que na época existia; a alternativa era procurar no estrangeiro estabelecimento onde pudesse saciar a vontade de saber. Alguns estudantes demandavam Salamanca, mas tal não estava ao alcance de todos. Por outro lado, quem saía, com mais dificuldade regressava ao reino por ter ganho a ilustração que entre nós não tinha o apreço e recompensa devidos - assim aconteceu com Pedro Hispano ou Pedro Julião, único papa português que adoptou o nome de João XXI, o qual deixou fama e obra muitos anos recordadas além Pirenéus. E, acima de tudo, o clero - razão fundamental para a fundação da Universidade - não tinha erudição suficiente para contribuir para o desenvolvimento cultural dos povos embrutecidos no labor da terra ou dispersos nas distracções da corte.
Se os pontos por mim realçados - em desfavor de tantos que seria ocioso mencionar - não fossem suficientes para dar a D. Dinis um lugar de destaque na História da Monarquia portuguesa um outro há que o torna no fundador oficial da língua por hoje falada. Na verdade, ao seu régio mando se deve a obrigação de todos os registos terem deixado de ser feitos no latim mais que adulterado, em uso pelos tabeliães, para se utilizar a língua vulgar, ou seja, o galaico-português, já em fase de afastamento do utilizado a Norte do rio Minho.
E cabe aqui, para satisfação de todos - e, nos tempos que correm, são muitos - quantos querem descobrir para Portugal uma vocação esotérica, deixar recordado que foi D. Dinis o rei que conseguiu da Santa Sé autorização para converter em Ordem de Cristo os bens e os freires da Ordem do Templo. Se eles eram detentores de um saber ecuménico, de um entendimento da vida espiritual diferente da disciplina eclesiástica estabelecida, puderam preservar tais valores e - quem sabe? - por isso terão sido os impulsionadores da grande epopeia dos Portugueses: os Descobrimentos.
Teremos de salvaguardar os quase sete séculos de distância, a época, as mentalidades, mas não devemos deixar de nos interrogar como foi possível, em quarenta e seis anos - dois menos que o tempo de duração da ditadura militar e salazarista - tanto fazer pelo progresso e modernização de Portugal quando, em quarenta e oito - de 1926 a 1974 - tanto se retrocedeu nos mesmos domínios. Estranho, como se pode sair das trevas ou permanecer nelas com a mesma passividade de quem assiste indiferente ao correr dos das horas, dos dias e dos anos!