quarta-feira, abril 25

2 - No centenário do meu Pai


Certamente o leitor nunca se interrogou sobre qual é a povoação mais ocidental da Europa. Mas se, por um acaso, já alguma vez se lhe colocou esta dúvida, quase pela certa terá pensado no continente europeu e jamais no arquipélago dos Açores. Pois é. Na distante ilha das Flores, virada para o continente americano situa-se a freguesia da Fajã Grande, localidade mais a ocidente na Europa.

Também poucos são os portugueses que se dão ao trabalho de consultar o dicionário para procurar saber o que é uma fajã. Se folheassem esse pesado livro onde se compilam os significados do vasto léxico por nós usado dariam com a seguinte explicação: «fajã: terreno plano, cultivável, de pequena extensão, situado à beira mar, formado de materiais desprendidos da encosta». Por mera curiosidade, posso acrescentar que é um termo próprio dos Açores e de origem desconhecida.

Então, a localidade da Fajã Grande, por definição, fica à beira mar e tem atrás de si uma encosta que, no caso vertente, é uma alta arriba escarpada de onde correm duas ribeiras – a das Casa e a do Cão – que se despenham à vertical para correrem rumo ao oceano. É um aglomerado de casas dispersas, formando pouco mais do que meia dúzia de arruamentos.
Para lá chegar ou se vai de barco ou de automóvel, deixando-se para trás, sem nela se ter entrado, uma outra pequena urbe de nome Fajãzinha. No Verão, de preferência em Julho, se não chover e o céu não estiver carregado de nuvens, a paisagem que se desfruta do alto da rocha sobranceira à Fajãzinha é idílica, pela beleza do colorido da vegetação – onde abunda o verde, o azul e o rosa das hortênsias – e pela grandiosidade do confronto entre o mar imenso, o silêncio só cortado pelo voo e grito das aves e o marulhar distante da cascata de água cristalina que forma a Ribeira Grande.
Quem vem de automóvel para a Fajã Grande entra pela Assomada para vir desembocar na Rua Direita, no enfiamento da anterior; passa-se pelo largo e tem-se, a meio caminho, a igreja e, por detrás, o cemitério. Mais adiante a Casa do Espírito Santo (de fora) e as bifurcações para a Tronqueira e a Via d’Água.
Só já na Rua Direita os edifícios – de baixa estatura, não vão além de um primeiro andar – estão ligados uns aos outros, porque, antes, separam-se por pequenos quintais onde ainda se cultiva algum alimento para consumo da casa.
Foi lá ao fundo, na Tronqueira, quase já próximo do caminho que conduz ao começo da larga baía onde desagua a Ribeira das Casas, bem de frente para a imensa queda de água que se despenha da alta rocha de 90 metros, numa casa desnivelada em relação à rua, que o meu pai nasceu no dia 4 de Dezembro de 1907.

Não seria a Fajã Grande muito diferente, há cem anos, do que é agora, salvo os benefícios que a tecnologia introduziu naquela distante ilha. As diversões poucas ou nenhumas, convidavam a uma vida que se distribuía entre o trabalho – não muito apressado pois os ritmos da Natureza são lentos – e uma religiosidade que se praticava na igreja matriz, construída, em 1868, sob a invocação de S. José, no lugar onde já existia uma pequena capela, erigida em 1755, também dedicada ao putativo pai de Jesus.

As constantes chuvadas e a humidade relativa sempre deram àquelas terras um extraordinário poder fértil. Cresce o pasto em abundância, o que convidou a que os mais afortunados tivessem uma ou duas, às vezes, três vacas de ordenha que também serviam nos trabalhos do campo. Nas leiras próximas das casas, ou mais distantes, cresceu e cresce o milho e menos o trigo.

Frequentar o ensino primário era uma obrigação que todos cumpriam na falta de outros trabalhos. Mas não era rentável ter um mestre-escola capaz de ir muito além das primeiras letras e das contas. Esse era o motivo por que, para ser aprovado no exame da chamada 4.ª classe, havia que o candidato se deslocar à vila de St.ª Cruz onde residia o professor com competência para aquilatar do saber e passar o respectivo diploma. Coisas que já só a imaginação concebe, nos tempos que correm!

Engastada entre verdura
Daquele bosque de além,
Qual diamante fulgura
A terra da minha mãe…

Terra de graça e ventura!
És minha terra também.
Viste-me, tu, com brandura,
Vir ao Mundo, ser alguém.

Volveram-se anos, parti…
Mesmo longe de ti
Onde o Destino me mande

Nunca mais te hei-de esquecer
Mas sempre bem-dizer
Minha aldeia Fajã Grande.

Foi assim, em poesia simples, quase ingénua, que o meu pai, rondaria os vinte anos de idade, escreveu na revista Os Prelúdios, que se publicava em Angra do Heroísmo as saudades que o roíam da freguesia. Estava, então, prestes a deixar para trás o seminário e a despreocupada vida de estudante de que sempre gostara. Vocação sacerdotal não a tinha, como o atestam os versos que pela mesma época escreveu, mas não publicou.

Duas fadas que passavam
Em noite de lua cheia,
Sozinhas ao pé da aldeia,
Deste modo conversavam:

- Vamos colher muitas rosas
Na rainha das roseiras,
De todas as mais Formosas
Como colhem as romeiras?

E desfolharam as rosas
Que colheram de mão cheia
- Rosas frescas, tão viçosas!

E em noite de lua cheia
As folhas – todas mimosas –
Foram as moças da minha aldeia…

Os sonhos da juventude, a distância da terra natal, as saudades da família – especialmente da mãe que adorava – a ambiência intelectual da velha cidade capital do arquipélago, ter-lhe-ão despertado o gosto de fazer poesia. Todavia, como mais tarde provou, viria a ser no jornalismo a sua primeira área de afirmação.
Foi vendo o seu exemplo e ouvindo, com atenção, as suas longas palestras – que os amigos escutavam com prazer – que em mim nasceu o desejo de lhe imitar o talento. Mestre na arte de me ensinar a viver, o meu pai foi, também, um severo crítico da minha prosa. Com ele aprendi muito.

segunda-feira, abril 23

1 - No centenário do meu Pai

A 4 de Dezembro próximo, passa o centenário de nascimento do meu pai.
Há anos, pensei prestar-lhe uma homenagem bem mais luzida do que esta; esta que vai ficar aqui na blogosfera para quem quiser dela desfrutar. Imaginava-me com forças e paciência – acima de tudo, paciência – para compilar as muitas crónicas que foi publicando na imprensa regional e, depois de seleccionar as que tivessem maior actualidade, procurar os devidos apoios para publicar um livro; um pequeno volume que deixasse, mais uma vez, o seu nome nos catálogos da Biblioteca Nacional. Seria um marco para reavivar o passado e um pequeno luzeiro para todos quantos quisessem orientar-se pela opinião de um Homem vertical. Confesso, faleceram-me as forças que me iriam animar a necessária paciência para tal empresa. Outros desafios se me foram colocando e o sentimento de gratidão – ainda bem vivo em mim – decaiu no seu propósito. Assim, modifiquei os planos, alterei as rotas, corrigi os rumos e optei por ir juntando neste blog lembranças, recordações, escritos e deitar tudo neste espaço onde todos chegam gratuitamente, animados pela curiosidade ou empurrados pela força do acaso. Não figurará o seu nome no catálogo da Biblioteca Nacional, mas derramar-se-á por todos os continentes, esperando os olhos ávidos de leitura, de leitura na língua de Camões.

Seria lógico que começasse a homenagem, dizendo quem foi, quem era, o meu pai; acima de tudo, seria curial que iniciasse a narração pelo princípio, isto é, pelo dia 4 de Dezembro de 1907. Não o vou fazer assim. E não o faço, pois iria incorrer na vulgaridade e o meu pai, ainda que quase um anónimo no país, ainda que só conhecido de alguns – a maioria já não pertence ao número dos vivos – não era vulgar. Aliás, julgo que, quase para todos nós, o nosso pai nunca é vulgar! Então, o meu, por razões que não são as de toda a gente, era menos vulgar ainda.

Os meus sonhos, como nuvens, vão dispersos
- São pombas que fugiram de um pombal –
Seguindo rumos vários, já imersos,
Na senda de inclemente vendaval…

Sonhos loucos, criados nos reversos
Da cunhada medalha do Irreal,
Procuram, em tropel, mundos diversos
Em longa caminhada sideral.

Gótica catedral, por mim erguida,
Em cada ogiva pus, como em guarida,
Um sonho, uma ilusão, uma quimera.

Desfez-se a catedral – era de espuma,
Das minhas ilusões ficou só uma,
Incerta da Certeza que eu quisera!

Um Homem prático, quase, aparentemente, frio e com pés de chumbo, calcando as pedras que a Vida lhe colocou nos trilhos que teve de percorrer, o meu pai deixou para nós, para a posteridade, esta prova, este testemunho de uma alma capaz de sonhar! Afinal, sonhou, sonhava, mas a realidade de um dia-a-dia eriçado de dificuldades, cravando-lhe os espinhos aguçados de um pão que tinha de ser suado, dispersaram-lhe a capacidade onírica que nele restava.

E o soneto que deixo hoje aqui não o escreveu no ardor da juventude – nem o poderia ter feito, tal o misto de sentimentos lançados ao papel. Não. Saiu-lhe da esferográfica a meses de completar sessenta anos de idade. É o grito de quem viveu espartilhado entre a obrigação e a ânsia de ser livre. É a dureza de quem olha já o fim sem ter podido começar por onde se inicia a caminhada. E, como a Vida é cruel, cheia de surpresas, plena de esquinas quando se julga estar a calcorrear seguras rectas, ele, o meu pai, o Homem que viu a sua catedral desfeita em espuma, morreu treze anos depois!

Atrás de si deixou, em nós, um grande vazio. A nossa saudade, as minhas saudades foram pazadas incapazes de encher esse espaço, esse imenso buraco que o tempo disfarçou, mas jamais esqueci o sentimento de ter uma muralha a segurar-me mesmo quando se me começavam a encanecer os cabelos. O meu pai era essa imensa muralha, mais longa do que a da China e mais alta do que a de qualquer castelo roqueiro.