Morreu, no dia 26, com 83 anos uma das mais destacadas figuras da corrente surrealista portuguesa: Mário Cesariny de Vasconcelos.
Posso dizer que não o conheci pessoalmente o que corresponde a uma quase verdade e, ao mesmo tempo, a uma quase mentira. Vejamos esta afirmação paradoxalmente verdadeira.
Na idade em que se «conhecem» as pessoas nunca contactei com Mário Cesariny, isto é, na idade da razão não tive o ensejo de lhe falar, de estar perto dele. Contudo, na minha meninice, pelo menos uma vez, estive com o poeta. E foi no dia mais marcante do movimento surrealista português. Não foi um encontro feliz, mas teve algo de quase surreal. Eu conto.
Tanto quanto me lembro, corria o ano de 1948 quando se fez a primeira exposição surrealista em Portugal (aqui, entenda-se, Lisboa!). Foi num prédio de esquina, quando se vem de «eléctrico» da Graça para a rua da Conceição, mesmo na volta da Sé, frente às traseiras da casa onde, tradicionalmente, se diz ter nascido St.º António. Foi ali, creio, no segundo piso. Tinha eu seis anos.
Um meu primo, treze anos mais velho, o Fernando Alves dos Santos, fazia parte do grupo dos surrealistas (Diário Flagrante, 1954 e Textos Poéticos, 1957).
Jovem culto, de espírito aberto, vivendo uma rebeldia que os anos e o afastamento da actividade literária acabaram matando, o Fernando estava exultante com a exposição. Convidou toda a família para ir, em quase romagem, até à Sé, quer dizer, até ao largo da Sé, para ver com atenção e cautela a produção daquele pequeno núcleo que ousava romper com tradições e paradigmas. Entre ele e o António Maria Lisboa havia uma longa amizade que vinha dos tempos da escola primária e aquele, a par com Cesariny, era um dos grandes esteios deste grupo inicial.
Para a exposição, o Fernando contribuíra com vários desenhos, alguns poemas e um velho baú que havia pertencido ao meu avô e o acompanhara em todas as expedições militares que fizera a África e a França; por dentro forrava-o um papel de cores garridas, mas já debotadas pelos anos. O Fernando via nele todo um mundo de fantasia e sonho que eu, nos meus poucos anos, por mais que olhasse só distinguia o que realmente conseguia ver. Nada mais! Depois, fazia-me imensa confusão aqueles desenhos de olhos fora dos rostos, os corpos sem pernas nem braços, mas com enormes buracos no tronco ou na barriga, os braços fora de sítio, ora sobre as cabeças ora quase no lugar das pernas. O meu primo bem catequizava a irmã dele e a minha, tentando despertar-lhes o entendimento para o que elas não compreendiam e eu, miúdo, desejoso de perceber as conversas dos adultos, menos ainda. Da família, só o meu pai parecia disposto a «entrar» naquela quase loucura, como então, os ignorantes da época, achavam tais manifestações de arte.
Uma noite – julgo que terá sido mesmo na da abertura oficial da exposição – lá fomos, o meu pai, a minha irmã, aquele que acabaria por ser meu cunhado e eu, da zona da Graça, onde morávamos, até ao largo da Sé para vermos os trabalhos dados à mostra desta Lisboa ignara e arredia do que lá por fora era já bem conhecido. Lá fomos, pois, assistir ao acto, creio, inaugural com récita de alguns poemas pelo Mário Cesariny de Vasconcelos. Sentámo-nos nas primeiras filas de cadeiras, bem próximo do ponto onde o anfitrião ia dar a conhecer algumas das suas produções. Aí começou a minha e, provavelmente, a desgraça do Cesariny. Torno a contar.
Atento ao que se dizia, talvez excessivamente atento, a dado passo reparo que o orador declamava um poema sobre coisas estranhíssimas tais como escrever num papel com uma caneta sem tinta ou vice-versa (porque, para o efeito, é indiferente)... Era um discurso perfeitamente incoerente, incompreensível – nos parâmetros pelos quais a minha sensibilidade artística se pautava então – que me pareceu dito por um louco varrido. Na minha mais pura inocência desfraldei-me em risos incontidos, gargalhadas sonoras que levaram o meu pai a impor-me imediato silêncio visto o Cesariny ter interrompido a leitura, face a tão «inaudita» atitude de uma criança. Calado ele, calei-me eu. Retoma o poeta a palavra e continua a sair-lhe pela boca tudo quanto eu achava incoerente e de novo rebento em gargalhadas. Desta vez o Mário Cesariny de Vasconcelos, fuzilando com os olhos o meu progenitor enquanto o meu primo Fernando Alves dos Santos quase arrancava a farta cabeleira de tanto se arrepelar, pediu, em tom irrecusável, que o pai da criança a levasse para fora da sala.
Lá fomos os dois. O meu pai apelou a todo o meu bom-senso infantil e voltámos passados uns minutos. Ficámos de pé, lá no fundo. A leitura continuava e, mais uma vez, não tive travão na gargalhada cristalina que me saiu boca fora. Foi, de facto, a última. O meu pai arrastou-me para o patamar da escada, fora de portas, de modo a conter-me o riso que, em mim, sempre foi fácil.
O Fernando Alves dos Santos morreu há 14 anos – curiosamente também em Novembro – se calhar sem nunca, no fundo de si, me ter desculpado o pouco respeito pela nova corrente literária e artística que também ele ajudara a fazer despontar em Portugal. Naturalmente, o Cesariny terá esquecido o episódio, ou talvez não. Verdade é que não se me apresentou ocasião para lhe recordar o facto e pedir-lhe desculpa pela minha inocente e quase surreal sessão de gargalhadas.