quarta-feira, abril 5

Eles comem tudo...

Foi em Maio, há trinta e oito anos. A Europa e, talvez uma grande parte do mundo, acompanhou com apreensão os acontecimentos em França. A juventude universitária, à qual se juntou a voz dos operários, reclamava, exigindo reformas profundas. Ficou célebre o slogan «Imaginação ao Poder». Depois da recuperação da 2.ª Guerra Mundial e da ocupação nazi, do desastre militar na Indochina, da guerra e retirada, a descontento de muitos, da Argélia e, depois, acima de tudo, do boom económico dos anos 50 do século XX, os Franceses — os jovens Franceses — queriam novas perspectivas de vida, emprego assegurado após a conclusão dos estudos. E tudo isto porque a França estava a atravessar um período que parecia favorável à implantação prática das ideias de uma esquerda política liberal e liberalizante.
Decorridos trinta e oito anos, caído o muro que envergonhava os Europeus, desfeito o sonho de um Estado socialista, afirmada a superioridade de uns Estados Unidos pacóvios apoiados e «nobilitados» por um entendimento com a Grã-Bretanha quase subserviente, vivendo um modelo novo de capitalismo velho, os jovens Franceses gritam ao mundo e aos seus governantes que não aceitam as regras de uma concorrência cega e, acima de tudo, injusta. A França revolucionária está a dar os primeiros passos para contraditar a viragem acelerada que o capital acéfalo, desnacionalizado e sustentado por uma produção que assenta em meros desejos e quimeras impostos aos consumidores por uma máquina publicitária implacável, lhe quer determinar e, também, a todos os povos do mundo.
Já não se trata de um afrontamento entre a Direita e Esquerda por causa de uma lei declaradamente favorável ao desenvolvimento de um capitalismo cada vez mais atrevido e impositivo. Um capitalismo globalizante capaz de determinar regras que até podem, à primeira vista, e numa perspectiva pontual, parecer quase justas, «normais», «convenientes». Mas o cidadão francês tem consciência política e vislumbra o alcance das propostas governamentais e onde elas vão desembocar, por isso, independentemente da simpatia partidária, quer garantir a justiça social. Só assim se justificam os milhões de manifestantes. A célebre lei, hoje já vulgarizada pela sigla CPE, é a garra do capitalismo brutal que se mostra. Um capitalismo que sacrifica tudo e todos à satisfação dos seus interesses.
Que Esquerda pode surgir deste braço de ferro que se trava no parlamento francês e nas ruas das maiores cidades de França? Eis a pergunta que, julgo, devemos deixar suspensa, porque logo outra se coloca com igual pertinência: haverá lugar a uma nova Esquerda? Uma Esquerda simultaneamente representativa das liberdades individuais e dos interesses colectivos? Capaz de perceber que a globalização contém em si mesma a exaustão dos recursos naturais, provocando a catástrofe ecológica já anunciada.
A França clama, neste momento, contra uma lei que desprotege a juventude, mas que mostra o esboço do hediondo monstro de um capital sem cabeças onde se possa atirar para matar. A França não quer pactuar com um futuro definido por uma globalização escravizante. E não quer, porque tem consciência de ser suficientemente rica para enfrentar o futuro dentro de um quadro de equilíbrio e justiça. Assim todos quantos se reclamam representantes da Esquerda tivessem a coragem de dizer: — Basta. É tempo de acabar com os predadores!