terça-feira, maio 9

O primeiro rei de Portugal

Há uma pergunta que me assalta quando medito sobre a origem histórica e, consequentemente, política do nosso país:
— Nos recuados anos de 1140 (mais coisa, menos coisa) será que os camponeses do Alto Minho tinham consciência de serem portugueses (ou portucalenses) e desejo de serem independentes do reino de Leão?
Imagino que o meu leitor já esboçou um sorriso e pensa com os seus botões: — Este está louco ou para lá caminha! Então querem lá ver um pobre camponês do século XII preocupado com ser isto ou aquilo! Ele queria era não morrer de fome e ter no final das colheitas o suficiente para pagar ao seu senhor os impostos que lhe lançava em cima dos ombros!
Se o leitor pensou assim, pensou muito bem, porque concordo consigo.
Realmente a minha pergunta é mais retórica do que outra coisa qualquer. Mas tem o seu fundamento.
Abra o leitor um compêndio de História de Portugal e verá que todos, ou quase, os historiadores se referem a D. Afonso Henriques como o «fundador da nacionalidade». Ora, no mais estreito rigor histórico, o nosso primeiro rei o que fundou foi um Estado, porque o conceito de Nação obriga a que os habitantes, o Povo, a população, o grupo social — chamem-lhe o que lhes der na gana — tenham consciência de pertencer a um mesmo agregado humano, enaltecer a sua história, desejar viver o presente em conjunto com os restantes elementos e, também, querer continuar no futuro a herança de vida em comum. Como nada disto ia, pela certa, na cabeça dos camponeses do Norte do território, também, pela certa, é um tremendo erro dizer que D. Afonso Henriques fundou a nacionalidade! O primeiro rei português foi, isso sim, um testa de ferro dos interesses dos grandes barões de entre Douro e Minho.
Anda por aí a circular uma quase tese segundo a qual D. Afonso Henriques não seria, efectivamente, o filho do conde D. Henrique e de D. Teresa. O pai morreu poucos anos após o nascimento do filho e este foi entregue (não se sabe quando) a Egas Moniz — um dos grandes barões do condado — para na qualidade de aio, o educar; a criança teria morrido e o nobre, de combinação com os outros grandes senhores da terra, substituiu-o por um seu filho da mesma idade. Claro que tudo isto não passa de uma hipótese, mais ou menos desconchavada, lançada para o ar e sem fundamento documental. Desta maneira justificar-se-ia o cruel tratamento do suposto D. Afonso para com a D. Teresa (raciocínio demasiado romântico e «bonzinho» para ser verdadeiro naquela altura da Idade Média! Esquecemos que, então, a rudeza de sentimentos caracterizava as relações sociais).
Seja como for, D. Afonso Henriques foi o primeiro rei de Portugal. A ele se deve a reconquista definitiva de todo o território do Estado até ao rio Tejo. Embora tenha andado pelas terras do Sul, foi, no fim da vida, obrigado pelos sarracenos a recolher as suas hostes para trás das águas do rio que divide esta área da Península.
Corro o risco de cometer aquilo que em História se chama um anacronismo, se disser que D. Afonso Henriques desenvolveu uma estratégia muito inteligente para conseguir fazer reconhecer o condado como um reino independente e não vassalo de Leão. O risco vem do facto de, no século XII, não ser conhecido o conceito de estratégia; não se falava de tal, mas já se praticava... Aliás, sempre se praticou, porque a estratégia está intimamente ligada ao conflito e, desde que dois homens coabitem o mesmo espaço, existe conflito, dando origem à definição instintiva de estratégias. Se aceitarmos a sua existência, embora não revelada como tal, estamos em condições de perceber como o primeiro rei de Portugal se movimentou para alcançar o objectivo que tinha em mente ou lhe era sugerido pelos seus mais próximos conselheiros. Vamos, então, esclarecer a questão.
D. Afonso tinha de desenvolver um conflito em três frentes adversas: os Mouros, a Sul do território, os Galegos/Leoneses, a Norte e Este e, por fim, a Santa Sé, autoridade indiscutível a quem o reconhecimento do poder temporal, naquelas épocas, se ficava a dever. O alcance do seu objectivo dependia da boa ou má articulação que fosse capaz de fazer destes factores.
Era necessário enfrentar militarmente Leão e os Mouros, mas havia que saber tirar proveito de ambas as acções. D. Afonso, depois de internamente dominar os adeptos da causa de D. Teresa — que a viam como sucessora do conde D. Henrique — optou por atacar, como se impunha, o primo, Afonso VII, de Leão, tomando a Galiza como eixo do movimento castrense. Nisto se gastou tempo até se chegar à paz de Tui, em Julho de 1137. Este acordo resultou da imperiosa necessidade de desviar forças para o Sul do território, entretanto atacado pelos Sarracenos.
Em 1140, D. Afonso Henriques sai vitorioso, na batalha de Ourique, contra os muçulmanos. Intitula-se, logo de seguida, rei de Portugal e de novo ataca a Galiza. As forças dos dois primos defrontam-se em Valdevez. Outra vez o auto aclamado rei de Portugal aceita fazer a paz com Afonso VII, agora em Zamora, corria o ano de 1143. À conferência esteve presente o cardeal Guido de Vico, representante do papa. O rei de Castela e Leão reconhece Afonso Henriques como rei de Portugal e este presta vassalagem ao papa, prometendo-lhe o pagamento de quatro onças de ouro em cada ano.
Porquê foi tão fácil o entendimento? Razão simples; Afonso VII queria ver-se reconhecido pela Santa Sé com o título de imperador da Hispânia, convindo-lhe deste modo a vassalagem de um rei, já que concedeu ao primo o título de senhor Astorga, alçando-se assim a seu suserano.
Pareciam conseguidos os intentos de D. Afonso I de Portugal, mas faltava o mais importante: o reconhecimento da Santa Sé. Para tanto, de novo, o monarca português usou de inteligência, tirando proveito da oportunidade que lhe surgia: atacou os Mouros, no Sul do território. Assim, lutando contra o infiel, alargava o território da cristandade enquanto engrandecia o seu reino. A tal não podia ficar indiferente o papa.
As conquistas começaram em 1147, por Santarém, e, continuando, caíram Lisboa, Sintra, Almada e Palmela. Em 1158 ou 1160 foi conquistada Alcácer do Sal. Já seguro do avanço, D. Afonso Henriques conquistou, em 1159, Tui, na Galiza. Depois, o território de Límia e, em 1163, Salamanca. É, então, que dois anos mais tarde, pelo Tratado de Pontevedra, o rei de Portugal e de Leão, acertam a paz e as devoluções respectivas. De novo, o monarca português se vira para Sul e já conquistada Évora, em 1179 o papa, pela bula Manifestis Probatum, reconhece D. Afonso I rei de Portugal. No ano anterior, o infante D. Sancho havia feito uma entrada em território sarraceno, chegando até aos arredores de Sevilha. Estavam alcançados os objectivos do primeiro rei de Portugal.
Fiel à estratégia definida, venceu resistências e dificuldades.
Tendo começado por uma pergunta retórica, deixem os meus leitores que finalize com mais duas:
— Como interpretarão os políticos nacionais, hoje, agora, as capacidades do fundador do Estado português? Seriam eles hábeis suficientes para traçar uma estratégia definidora de uma nova fundação?
Permitam-me que duvide...