quinta-feira, agosto 10

D. Fernando I e o problema hegemónico

Como mera curiosidade, antes de entrar no tema que dá título ao apontamento de hoje, gostaria de recordar que houve na História de Portugal dois reis de nome Fernando. Raro é que os mais versados nestas temáticas sejam capazes de identificar o segundo– porque o comum, hoje em dia, é ninguém saber os nomes dos reis e dos presidentes. Aqui fica a explicação para esclarecer dúvidas.
Em toda a História da Monarquia portuguesa só foram rainhas duas mulheres: D. Maria I e D. Maria II, ambas na quarta dinastia. Acontece que as duas optaram por, após terem sido mães, elevarem os respectivos maridos à condição de rei consorte. Deste modo, D. Maria I, casada com o seu tio (irmão do pai, D. José) fez dele o D. Pedro III que, normalmente falta na enumeração dos monarcas e, D. Maria II, casada com D. Fernando de Saxe-Coburgo-Gotha, depois de ter enviuvado, logo após o matrimónio, de D. Augusto de Leuchtenberg, fez dele o segundo dos Fernandos de Portugal.
Explicação sem interesse, a anterior, serve só para mostrar alguma erudição sobre pormenores da nossa História.
Entre D. Fernando I e D. Fernando II decorreram vários séculos de ricas e importantes ocorrências. Iniciou o primeiro o seu reinado no dia 18 de Janeiro de 1367, data da morte de D. Pedro, seu pai.
Em Castela, Henrique de Trastâmara – Henrique II – meio irmão do monarca daquele reino, havia ascendido ao trono à custa do assassinato de Pedro I. A guerra civil instalara-se. O casamento de D. Fernando, ainda infante, em tempo de seu pai, havia sido aprazado com uma das princesas castelhanas. Não chegou a realizar-se.
Na Europa vivia-se a Guerra dos Cem anos que ainda não tivera reflexos na Península. O grande cisma do Ocidente dividia a cristandade entre a obediência ao papa de Avinhão e ao de Roma. D. Fernando, com todo o clero de Portugal, era adepto da tradição romana.
Ao sentar-se no trono português o novo monarca herdou um reino com as fronteiras consolidadas, os poderes da nobreza e do clero suficientemente dominados e, acima de tudo, um tesouro financeiro em boa ordem. Portugal era um reino estável numa Europa ainda à procura dos seus limites políticos e culturais.
A situação política no reino vizinho e a conjuntura interna em Portugal levaram a que D. Fernando, invocando a condição de bisneto de D. Sancho, rei de Castela, pretendesse para si o trono usurpado por um assassino. Fernão Lopes é bem explícito nesta ambição real: «posto que alguns digam que elle não tomou n’esta guerra senão titulo de vingador da morte de el-rei D. Pedro, seu primo, isto não foi d’esta guisa; mas faziam entender a el-rei, e elle assim o dizia, que pois el-rei D. Pedro era morto que elle ficava herdeiro dos reinos de Castella e de Leão, cá era bisneto legitimo d’el-rei D. Sancho de Castella, neto da rainha D. Beatriz, filha do dito rei D. Sancho. Porém elle nunca se entremetera de começar tal demanda, nem buscar esta avoenga de tão longe, se não foram os logares que se lhe deram de seu grado e os muitos fidalgos que se vieram para elle, que lhe isto faziam entender».
Realmente, em favor de D. Fernando manifestaram-se os senhores de Samora, Cidade Rodrigo, Alcântara, Valença de Alcântara, Orense, Corunha, Tui e mais umas quantas cidades da Galiza. Ao mesmo tempo, houve fidalgos castelhanos que, por se manterem fiéis à causa de D. Pedro I, ofereceram os seus serviços ao monarca português, pedindo-lhe guarida. Nesta conjuntura, D. Fernando dispôs-se à guerra.
Foi, durante a primeira dinastia, a única vez que o rei de Portugal aparentou desenvolver qualquer interesse hegemónico sobre Castela. E tal acontece, porque o quadro conflitual surgia favorável a D. Fernando, demonstrando que o suporte para tais aventuras resulta da concorrência de factores endógenos e exógenos.
Sempre que na guerra só se levam em consideração um dos dois tipos de factores mencionados a vitória está seriamente comprometida. Curioso foi que, mesmo gozando de uma conjuntura aparentemente auspiciosa, D. Fernando viu derrotado o Exército português. Não nos esclarece o cronista, contudo, que, muito naturalmente, a vitória tenha escapado das mãos do monarca português, porque os mais elementares executantes da contenda, os soldados anónimos, não a tomavam nem sentiam como coisa sua. Na guerra, para que o querer do general seja exequível é necessário que o soldado assuma pertencer-lhe a vontade de quem manda.
Foram três as tentativas de D. Fernando: a primeira, de Junho de 1369 ao início de 1371; a segunda, em Dezembro de 1372, embora por iniciativa de Henrique II, teve como origem o casamento de D. Fernando com Leonor Teles (faltando ao compromisso de se consorciar com D. Leonor de Castela, filha do monarca vizinho, como ficara acordado em Alcoutim) e a aliança que o rei português havia feito com o duque de Lencastre, filho segundo de Eduardo III de Inglaterra, pretendente, como ele, ao trono de Castela; o tratado de paz, depois de uma derrota sem honra, foi assinado, em 24 de Março de 1373, em Santarém; a terceira e última guerra, iniciada por D. Fernando, no ano de 1381, com escaramuças no Alentejo, decorreu entre dois males: por um lado, o provocado pelos Ingleses, soldados do conde Cambridge, vindos em auxílios das tropas do rei, os quais se comportaram como em terra conquistada e, por outro, os roubos e violências que os Castelhanos levaram a cabo no cerco de Lisboa, em 1382; a incompetência dos Portugueses em fazer a guerra foi tal que D. Fernando (o primeiro a desinteressar-se da superior orientação do conflito, provavelmente por já se sentir doente) negociou a paz, à revelia dos Ingleses, com João I de Castela, filho e sucessor de Henrique II. Por causa deste entendimento chegou-se a um desastroso acordo para Portugal, de modo que ficou em risco a independência do reino como nesse ano se verificou depois da morte de D. Fernando, em 22 de Outubro de 1383.
Assim se saldou a primeira tentativa hegemónica de Portugal sobre Castela, podendo parafrasear-se o Poeta, com alguma sabedoria, ao afirmar-se que o fraco rei faz fraca a forte gente.
Reinado cheio de sinuosas alterações, o de D. Fernando, monarca esbelto e sedutor, como dele diz Fernão Lopes, merece ser revisitado mais tarde, debruçando-me sobre o conjunto de medidas compensatórias dos dislates diplomáticos e bélicos deste soberano que pôs fim à primeira dinastia de Portugal.