quinta-feira, dezembro 4

Um doce centenário


Passou um ano sobre a última data em que aqui escrevi! E havia prometido a mim mesmo voltar em pouco tempo para continuar a prestar a justa homenagem ao meu saudoso Pai…
Diz o rifão popular que os homens põem e Deus dispõe. É certo que foram tantas as coisas que tive de fazer nestes pretéritos doze meses que, embora lembrando-me, ia sempre remetendo para a semana seguinte a escrita de um memória que se perderá quando eu fechar os olhos. Tenho, todavia, a consciência de que todos os impedimentos levantados durante este ano foram de tal natureza que, esteja o meu Pai onde estiver, se sentirá orgulhoso dos meus feitos. Foram coisas de pequena monta, julgo eu, mas tiveram a dimensão dos princípios colhidos no lar paterno. Foi, certamente, isso que as valorizaram aos olhos de uma luzinha perdida na imensidão dos mundos que imaginamos para além deste onde vivemos; uma luzinha à qual chamo espírito do meu Pai. Ele viu e sentiu, em uníssono comigo, os motivos impeditivos de cumprir a promessa feita há um ano.

Por uma feliz e rara coincidência os meus progenitores nasceram no mesmo dia, embora a minha Mãe fosse mais nova doze meses do que o meu Pai.
Passa hoje o centenário do nascimento da minha saudosa Mãe.
Todos os dias me assalta, uma, duas ou três vezes, à memória a lembrança dela. Entre nós havia laços muito fortes que nos amarravam de um modo muito especial. Laços inexplicáveis, mas sensíveis.

Tudo começou no início da gravidez.
A minha Mãe sofria (isto há 68 anos!) de um aperto mitral. Tratava-se uma doença cardíaca que, para os recursos da época, era grave, muito grave. Tinha, depois do nascimento da minha Irmã, sete anos antes, aumentado de peso e esse facto, associado à deficiência que a atormentava, criara um panorama sanitário que desaconselhava, à partida, a gravidez. O parto poderia ser fatal. Mas a minha Mãe, com uma coragem que só se encontra na abnegação de quem transporta em si a Vida, quis correr o risco. Contra o conselho clínico, ela levou por diante a gravidez e, passados os nove meses usuais, nasci eu de um parto muito difícil e doloroso.

Se todos os filhos agradecem às mães a existência eu tenho muito mais para agradecer. E creio que tive, logo em criança, a percepção da necessidade de desenvolver uma entranhada gratidão à minha Mãe. Por ela sacrificava todos os meus pequenos desejos juvenis; para a ouvir cantar abdicava de folguedos distantes do sítio onde ela estava. Formávamos um só!
Embora tendo um coração doente, a minha Mãe sabia nele albergar amor para todos nós… Para o meu Pai, para a minha Irmã e para mim! E estabelecia excelentes relações sociais, não passando pela má-língua, nem pela intriga. Gostava de falar sobre o seu passatempo favorito: o crochet.

Tinha eu seis anos, mal se conhecia e não se usava ainda a penicilina em Portugal, adoeci com uma febre tifóide. Durante um mês estive às portas da morte, com temperaturas superiores a quarenta graus. Nesse tempo, a minha Mãe, dormiu todas as noites ao meu lado, sem se despir, pronta para me socorrer, dar água e líquidos, únicos alimentos que podia ingerir. Se por ter nascido lhe devo a vida, de novo, aos seis anos, lha devo. Foram os seus cuidados – e os do meu Pai, também – que me fizeram vencer a parca quando as forças me faleciam em absoluto.

Prendiam-nos – a mim e a ela – laços invisíveis, mas, desde criança, quando estava junto da minha Mãe, era frequente, muito antes de se sentir mal, por causa de qualquer descompasso cardíaco, eu pressentir-lhe a dor e perguntar pressuroso: - Mamã, o que é que tens? E ainda vinha longe o mal-estar já eu me sintonizava com ela. Era algo de natural entre nós!

Os anos foram passando e a ternura daquele maternal amor adaptou-se ao meu crescimento masculino. Eu continuava a ser o seu “menino”, mas ela foi aprendendo a ver-me como um jovem e, depois, um homem. Hoje, com os cabelos encanecidos pela idade, experiente do que é viver e perder, penso, muitas vezes, como lhe terá sido difícil separar-se e esconder a doçura dos sentimentos que os filhos crianças geram em nós!

Viu-me ingressar, aos treze anos, no Instituto dos Pupilos do Exército – bem contra sua vontade – ficando obrigada a uma separação física que lhe doía; viu-me ir para a guerra por duas vezes – e, então, ficámos os dois de corações partidos; viu-me regressar; viu eu dar-lhe dois netos. Viu… E, cada vez mais fraca, foi-se apagando como uma vela que chega ao fim. Partiu de repente, num segundo (conforme me contaram), contudo nessa hora, nesse momento derradeiro, ia eu na rua, já estava escuro, tive uma dor fortíssima na zona da vesícula – como nunca tivera antes, nem voltei a ter; encostei-me à parede de um prédio e vi as horas. Fixei-as. Mais tarde, confirmei; tinha sido esse o instante em que a minha Mãe havia dado um grito e caído morta em cima da cama de dormir. Cortaram-se, para sempre, os laços invisíveis que nos ligavam. A morte dela passou por mim e avisou-me.

Lá onde estás, minha querida Mãe, sabes que, aqui, vou sentindo, em cada dia, as saudades, mas, mais do que elas, a doçura do teu olhar que não esqueço. E tu, eu sei, continuas a velar por mim, tal como aquele anjo da guarda que me ensinavas existir quando eu era criança.
Repousa, meu querido Anjo. Repousa em paz, enquanto o meu espírito foge para junto do teu.

terça-feira, dezembro 4

Há 100 anos


Passa hoje o centenário do nascimento do meu Pai. Curiosamente, porque tinham um ano de diferença, faria 99 anos a minha Mãe se fosse viva.

Estejam onde estiverem, sabem que, por razões poderosas, não tenho tido tempo para dar continuidade à homenagem que estou a prestar ao meu progenitor. Razões que lhes causariam orgulho se esse sentimento fosse consentido no etéreo local onde desejo que estejam. De qualquer modo, espero poder prosseguir nesse empenho depois do mês de Março do próximo ano.

Os aniversários passam, mas a saudade não se esvai.
Foi junto a Eles que aprendi as bases fundamentais que estruturam todos os meus comportamentos. Gostaria de passar intacto, aos meus filhos, o testemunho que dos meus Pais recebi. O tempo dirá se fui capaz dessa empresa difícil, mas sublime.

Como num filme de longa-metragem, que se visiona num instante, lembro o meu Pai e a minha Mãe. Recordo-os como eles eram em novos e, depois, em mais velhos; é sempre uma doce e suave lembrança que me assalta e com ela vou, também eu, envelhecendo, olhando para os meus netos e sentindo-os uma continuidade que vem de muito longe. E, se para os meus filhos me sinto um homem na encosta descendente da Vida, ao recordar os meus Pais vejo-me ainda menino, pronto para iniciar os caminhos do Futuro.
São muito estranhos os sentimentos que nos atravessam a mente e nos dão consciência de nós mesmos!

sábado, maio 19

5 - No centenário do meu Pai



Tanto quanto me lembro de ter visto na caderneta escolar do meu pai – que anda agora perdida, não sei onde – foi nesse ano longínquo de 1927 que, no Liceu Pedro Nunes, de Lisboa, concluiu os dois primeiros anos do ensino secundário oficial. Fê-lo na qualidade de aluno externo, proposto pelo Colégio Liceu de Sintra onde dava aulas de Português e Latim.

Tal como era próprio da época, fumava cigarros sem filtro que, no continente, se vendiam bastante mais caros do que nos Açores (há que atender ao facto de por lá haver produção local com fartura). O que lhe pagavam em dinheiro, no colégio de Sintra, mal chegava para as despesas do tabaco. Depois, acontecia que gostava de vir até ao centro histórico da vila beber um café no estabelecimento que ainda existe na esquina de quem está virado para o caminho de Monserrate, aquele que tem uma pequena varanda com mesas cá fora, mesmo ao lado do velho hotel. Era no canto do lado esquerdo de quem entra que se sentava a escrever e a ensaiar as tentativas poéticas.
Por lá conheceu figuras curiosas cujos nomes já não lembro: um pintor que deixou quadros com valor sobre Sintra e a serra, um jovem titular galego perdulário que o levava de automóvel ao Estoril e se confessava apaixonado pela minha mãe – que já se encantara de amores por aquele jovem açoriano e antigo seminarista. Mas um salário mais elevado, a condizer com as suas limitadas necessidades, impunha-se (a roupa que tinha eram os dois fatos pretos de seminarista, os sapatos, duas ou três camisas com colarinhos – no seminário usava-as sem eles para lhes colocar por cima o cabeção – e uma ou duas gravatas, alguns pares de meias, que ia passajando quando a teimosia do dedo do pé se impunha à fragilidade do tecido). Em Sintra não lhe podiam oferecer mais. A inflação galopante engolia as mensalidades que os pais pagavam pelo internato dos alunos.

De novo, com o apoio dos clérigos da Igreja Católica, conseguiu a transferência para o Colégio de Ermesinde, também chamado Colégio da Formiga por estar instalado no velho convento dos Eremitas Descalços de St.º Agostinho que, no século XIX, tomou a designação de Real Convento de Nossa Senhora do Bom Despacho da Mão Poderosa, o qual, já em 1842, era estabelecimento de ensino para os filhos dos miguelistas que não conseguiram emigrar e usavam como emblema uma formiga, recordando o conselho canónico «Vade ad formicam, piger, et disce sapientiam».
Por lá esteve o ano lectivo de 1927/28 que lhe deu para concluir o antigo 5.º ano dos liceus. Mas o Norte de Portugal não estava talhado para o meu pai. Queria vir para Lisboa onde as oportunidades se mostravam maiores. Depois, o acicate da falta de dinheiro era grande e na capital poderia tentar, agora com habilitações oficiais mais amplas, outros meios de ganhar o sustento, continuando a estudar – julgava – e avançar, após a conclusão do curso secundário, para a Faculdade de Direito, seu sonho íntimo.

Outra vez mais, com o apoio dos bons padres, que acreditavam recuperar uma vocação transviada, ingressou no corpo redactorial do diário católico Novidades.
Aqui tenho de fazer uma breve paragem no relato biográfico para enquadrar aquele matutino de Lisboa no contexto da época.

O Novidades era, nos últimos anos da 1.ª República, o mais forte refúgio da ideologia exposta na encíclica «Rerum Novarum», de Leão XIII. Ao mesmo tempo, constituía o baluarte dos católicos militantes que a custo aceitaram, em Portugal, a lei da Separação das Igrejas do Estado. Dali se fez trincheira contra as arremetidas de toda a imprensa republicana, em especial da que alinhava ou com o Partido Democrático – liderada pelo matutino O Mundo – e da que se arvorava em bandeira do livre pensamento.
Foi no jornal Novidades, sob o pseudónimo de Alves da Silva, que António de Oliveira Salazar, nos anos anteriores ao meu pai integrar o quadro de reportagem, fez publicar, enquanto membro do CADC e professor de Finanças da Faculdade de Direito de Coimbra, alguns dos artigos onde expunha as soluções que preconizava para pôr fim ao caos económico no qual Portugal estava mergulhado (ou que, pelo menos, muita da opinião contrária à República assim propalava e fazia crer) e que Sinel de Cordes, ministro das Finanças, não conseguia solucionar. Era um jornal com muita tiragem junto das camadas urbanas católicas e conservadoras, embora só pontualmente alinhasse aliar-se à faixa da oposição monárquica que possuía a sua própria imprensa.
Convirá recordar que, em 1928, a ditadura militar, liderada por Óscar Fragoso Carmona, ainda procurava encontrar o rumo político que conduzisse o país ao melhor porto de abrigo; uns preconizavam a intervenção militar com curta duração, outros que se fizesse a viragem para a Monarquia e muitos que se cortassem as amarras com a Constituição Política de 1911, então suspensa, para se encontrar uma nova fórmula governativa republicana onde prevalecesse a autoridade e a ordem. Como se sabe, prevaleceu a última a vontade, impondo Salazar, como governante tirânico, até 1968.

Foi este quadro que o jovem antigo seminarista de Angra do Heroísmo, quase acabado de chegar ao continente, teve de enfrentar na redacção do jornal católico de referência em Lisboa. O clima não era, de certeza, fácil para quem havia dois anos antes ainda se limitava a alinhar versos suaves e idílicos numa cidade afastada de todo o torvelinho da capital.
Acresce que, também pelo jornal, o salário não era abundante, mas dava para pagar o alojamento numa modesta casa de hóspedes, situada em uma das várias ruas próximas da avenida da Liberdade, onde tomava o pequeno-almoço, e sobrava para, com cautela, comer mais uma refeição por dia. Passava fome, o meu pai! Em carta que guardo, mandada para a irmã Maria – a segunda filha de toda a prole – confessava que lhe era agora muito útil a prática de jejum aprendida no seminário.

Da sua vida de jornalista quero realçar uns quantos episódios que guardo na memória, por os ter ouvido contar em diferentes alturas da minha meninice e juventude (devo dizer que o meu pai, ao contrário de mim, não gostava de falar do passado… o presente absorvia-o mais ou os sonhos desfeitos pelas agruras da vida representavam uma barreira com a qual lidava dificilmente; nunca desvendei este mistério).

O salário era calculado segundo um método curioso onde a exploração imperava na sua mais primária forma. Vejamos.
Havia uma parte fixa e inalterável, exígua, que lhe garantia o alojamento e muito pouco mais; a acrescentar a esta vinha outra parte móvel que resultava da dimensão de colunas preenchidas em cada edição do jornal. Era esta que arredondava, para cima, o mês, garantindo maior ou menor conforto nos trinta dias seguintes.
O meu pai explicava a sua grande tendência para a prolixidade escrita (uma pequena notícia havia que a «estender» para o chefe da redacção - um monsenhor de quem já não recordo o nome - cortar até lhe dar o tamanho julgado conveniente) baseado neste imperativo da sua juventude. Está claro que, para mim, nunca foi convincente, pois, tal como ele, há quem me acuse de me alongar nos relatos. Vem nos genes, lá isso vem.

No jornal recebia adiantado o dinheiro para os transportes, quando tinha de se deslocar para zonas distantes da cidade. Ora, como os meus avós maternos viviam em Santo Amaro – bem longe da Baixa – era com dificuldade que o meu pai visitava a minha mãe (além de que tinha de encarar com a má catadura do meu avô o qual, como velho republicano, não levava à paciência entrar-lhe pela porta e um dia para a família um antigo seminarista… Parecia maldição!). As reportagens para longe garantiam-lhe a possibilidade de se escapar até à rua dos Lusíadas, usando de um artifício que rapidamente aprendeu, como se aprende quando a lei da sobrevivência manda mais.
Se o acontecimento ia ter a cobertura de outro jornal, o meu pai combinava com um repórter «da concorrência» a hora a que lhe podia telefonar, enquanto se esgueirava para o Alto de Santo Amaro, usando os magros centavos recebidos para pagamento das deslocações. À hora aprazada, de casa do Senhor Comandante (um vizinho do meu avô que tinha telefone) o meu pai lá estabelecia a ligação com o colega recebendo os dados da ocorrência e, era na mesa da sala de jantar do meu avô, que nascia um longo e floreado relato, cheio de pormenores escrito numa prosa corrida e nervosa, como convinha na época para gerar a emoção nos leitores e, acima de tudo, impressionar o chefe de redacção. Normalmente, jantava lá em casa para conforto do estômago espalmado de fome. À hora conveniente, retirava-se, não sendo muito tarde, porque nem a minha avó, e menos ainda o meu avô, perdia de vista o gabiru não fosse fazer das que não se aprendem nos seminários, mas que não precisam de explicações.
Manhosices da natureza desta que relatei nascem de sistemas de exploração pouco dignos, fazendo que os explorados se defendam através do embuste. Para lá caminhamos, nos tempos que correm, a passos bem largos!

Nos anos de 1928 e 1929 – aqueles em que o meu pai foi repórter – a aviação vivia ainda a sua juventude e, entre nós, os oficiais pilotos aviadores eram heróis glorificados pela série de epopeias conseguidas por esses anos. O «café» Gelo, no Rossio, era o ponto de encontro de quase todos antes de embarcarem no comboio rumo à Amadora onde estava instalado o Grupo de Esquadrilhas de Aviação «República» (GEAR), unidade que já tinha, no seu palmarés, umas averbadas quantas façanhas aeronáuticas.
A relação entre aviadores e repórteres era excelente, porque dela poderiam vir bons resultados para ambas as partes; aos primeiros os segundos garantiam publicidade nas páginas dos jornais e estes ganhavam fama de aventureiros narrando as proezas em que tomavam parte. O meu pai deixou-se enredar nesta teia entusiasmante, mas foi por pouco tempo. Eu conto.
Certa manhã, no referido «café» do Rossio, um oficial aviador desafiou-o a irem até à Amadora para darem uma «volta» de avião. A novidade entusiasmou o meu progenitor, o sangue ferveu-lhe mais rubro nas veias e lá foi – à custa do oficial, claro – até ao GEAR. Não sei de que tipo de aeronave se tratava, só recordo que tinha dois lugares em tandem, sendo que no da frente ia o piloto e no de trás o meu pai.
Foram para a região da serra de Sintra e por lá o piloto quis mostrar as suas capacidades, fazendo acrobacia (não imagino que espécie de figuras) com voltas e reviravoltas apertadas. O meu pai não era homem de enjoar. O estômago – se calhar por hábito de estar vazio – a nada se comoveu, só que, em dado momento o meu progenitor inclinou-se para a frente e uma almofada do assento soltou-se e voou pelos ares. O aviador continuou até esgotar a sua perícia, regressando à Amadora. Quando aterraram e a aeronave se imobilizou, se calhar com ar irónico – que o meu pai não compreendeu, talvez por desconforto – perguntou-lhe o piloto: - Então você ainda está aí? Pensei que tinha caído lá na serra de Sintra!
A reportagem saiu no jornal, mas o meu pai passou a preferir os navios e o mar, que tão familiar lhe era, aos aviões pilotados por «gloriosos malucos».

Viviam-se os primeiros anos de censura prévia a qual afectava, em especial e em primeiro lugar, os jornais e os jornalistas (a rádio, nesses anos, estava a ensaiar os primeiros passos e só o teatro de revista fazia crítica social e política).
Dado que o Novidades se vendia de manhã, tinham de estar prontas as provas tipográficas por volta da meia-noite para as levar à comissão de censura e voltarem a tempo de, sobre a madrugada, se comporem os cortes e imprimir o jornal. Não era necessário empenhar neste trabalho todos os elementos da redacção; bastava que, até à hora do jornal sair para a rua, ficasse um redactor presente para estabelecer o entendimento com a comissão de censura e os tipógrafos, responsabilizando-se pela introdução dos cortes e respectiva reordenação das colunas. Para este serviço havia uma escala que obrigava todos os jornalistas ou, pelo menos, os mais jovens e com menores responsabilidades. Escusado será dizer que o elemento destacado para ficar de turno quase aguentava as vinte e quatro horas do dia acordado e a trabalhar. Quando algo corria mal na edição, por não ter sido introduzido o corte da censura, lá ia o desgraçado, em vez de repousar para casa, passar o resto da manhã em interrogatório na toda-poderosa comissão.
O meu pai, por duas vezes, foi chamado à censura. A primeira teve origem em uma qualquer falha de somenos importância, mas a segunda resultou da saída sem cortes de um artigo de fundo sobre o aumento do gás de cidade (estou a reproduzir de memória o que ouvi). Ora, aconteceu que esse tal artigo tinha sido amplamente amputado e, por uma coincidência desastrosa, era da autoria do meu pai.
Depois de muito esperar para ser recebido e ouvido pelos responsáveis lá entrou e, como lhe foi possível, tentou justificar uma falha para a qual não tinha explicação que fosse além do muito cansaço com que estava a trabalhar. O censor, impávido, repousado, ufano da sua autoridade, rematou um longo discurso, avisando: - E tome atenção, se isto se repete vai deportado para as ilhas!
Extenuado, farto da petulância de um pequeno tiranete, o meu pai, com grande à-vontade retorquiu: - Isso não é assim tão mau, porque eu sou de lá!
Irado e frustrado, o censor grita-lhe: - Então vai para Cabo Verde!
Era assim a censura nos anos longínquos de 1927 e 1928.

Estava em Lisboa, também a estudar, com um pequeno apoio da família, um antigo companheiro do seminário, irmão daquele que, muitos anos mais tarde, haveria de ser bispo de Cochim e patriarca das Índias Orientais, D. José Vieira Alvernaz. Sabendo que o meu pai estava no Novidades logo se aproximou (era um homem de uma imensa estatura física que veio, poucos anos depois, a morrer tuberculoso… fruto das dificuldades de então!) e de novo retomaram a amizade que vinha de longe.
Por vezes – não tão raras como actualmente – os jornalistas eram convidados para toda a espécie de eventos sociais onde se serviam bebidas espirituosas acompanhadas dos salgadinhos da época e pequenas sanduíches. Sabendo das dificuldades do seu amigo Alvernaz, o meu pai conseguia para ele um passe de jornalista e os dois, literalmente, atacavam os comes e bebes como se fossem camelos em véspera de travessia do deserto. Mais perito neste tipo de reabastecimento era o Alvernaz que conseguia encher os bolsos com reservas para, horas mais tarde, voltar a saciar a fome.
Já o meu pai tinha casado e algumas vezes convidou o seu antigo condiscípulo para jantar lá em casa, frente a uma mesa farta.
O ex-seminarista Alvernaz morreu sem conseguir concluir o curso de Direito como tanto ambicionava.

Desgostoso do trabalho, miseravelmente pago, incapaz de continuar os estudos, o meu pai, certa vez deu com um anúncio oficial para ser publicado no jornal. Nele constava que ia abrir concurso para o curso de enfermeiro da Armada. Era condição mínima ter mais de 21 anos, não ter sido dado como incapaz para o serviço militar, não possuir maleitas ou deformações e estar habilitado, no mínimo, com o 2.º ano do curso geral dos liceus. Oferecia-se o posto de cabo-aluno com direito a farda de sargento, alojamento, ordenado, fardamento e alimentação. Ao fim de três anos o candidato, tendo obtido aprovação, receberia as divisas de segundo-sargento.
Não seria advogado, nem jornalista, nem poeta – tudo coisas pelas quais tinha lutado – mas seria enfermeiro, profissão que jamais estivera no horizonte da sua imaginação. Tinha, até, uma certa aversão aos hospitais, mas tinha-a maior à fome e às dificuldades financeiras.
Concorreu à Armada. Foi admitido e cortou de vez as amarras que o ligavam ainda a um passado de preparação para eclesiástico.

Uma nova página estava virada na sua vida. Havia que a preencher da melhor maneira.

domingo, maio 6

4 - No centenário do meu Pai



Retomando o relato mais ou menos biográfico do que foi a vida do meu pai, pouco ou nada posso dizer quanto a pormenores do tempo que passou no seminário de Angra do Heroísmo. O que sei, são elementos dispersos, não contextualizados. Contudo, creio que valerá a pena deixá-los aqui, pois servirão, no mínimo, para ajudar a traçar uma fotografia – incompleta e de maus contornos – do que era a vida de um seminarista no começo do século xx, pelas décadas de 10 e 20, na ilha Terceira.

Segundo parece, logo nos primeiros tempos de integração nos estudos secundários, o meu pai começou a demarcar-se dos restantes colegas pela sua natural capacidade de estudo e aprendizagem. Deve dizer-se, no entanto, que era maior a sua apetência para as humanidades do que para as ciências exactas; as matemáticas, as físicas e as químicas que se estudavam no seminário – já de si poucas em dimensão científica e em profundidade de conhecimentos – não o atraíam. Deleitava-se com a aprendizagem da Língua Portuguesa, do Latim, do Francês, da Literatura (naturalmente condicionada pelas restrições institucionais do estabelecimento que frequentava).
Foi depois do 5.º ano (equivalente, agora, ao 9.º de escolaridade ainda que diferente em conteúdos) que se terão manifestado as tendências poéticas do meu pai. Admito isto com base no facto de não lhe conhecer qualquer texto manuscrito de entre o que deixou como espólio. Foi no despontar da adolescência que as musas o terão inspirado.

O meu pai sempre foi um bom conversador, extrovertido sem exageros, naturalmente popular. Estas suas características contrastavam com as de um primo direito, de nome José Luís, um pouco mais velho, que frequentava, também, o seminário – dois ou três anos mais à frente – tendo acabado por ser ordenado padre. Este era sorumbático por natureza, embora poeta e grande orador sagrado. Não tão brilhante nos estudos quanto o meu pai, tinha, contudo, maiores certezas quanto à sua vocação sacerdotal.

Quando ainda estudantes, nas férias de Verão, vinham passar o merecido repouso escolar à Fajã Grande. De manhã, a sua obrigação era assistirem à missa, acolitando o pároco da freguesia. Para tanto, vestiam-se com casaco e calça negra e camisa de cabeção gomado, cobrindo a cabeça com o regulamentar chapéu de feltro negro também. Como seminaristas tinham o dever de se distinguirem dos conterrâneos que trabalhavam na terra para ganharem, com o suor do rosto, o pão que haviam de servir em casa. Afinal, a sua seara era outra e para pastores se preparavam.
Acabada a missa, era usual irem ambos dar um passeio pela rua Direita e Via de Água, rondando pelo porto velho, o porto novo, rumando à Tronqueira. Era curto o passeio, mas dava para falar um pouco de tudo – mais o meu pai, que o outro limitava-se a ouvi-lo com ponderado silêncio. Pelo caminho iam encontrando este e aquele que o meu progenitor prontamente cumprimentava com efusão.
Certa vez, lá para as bandas do porto velho, depois de terem cruzado com um conterrâneo, perguntou o meu pai ao primo José Luís: - Ora diz-me cá uma coisa! O teu chapéu terá sido mais caro do que o meu?
Espantado, arrancado aos seus profundos pensamentos, o bom José Luís respondeu: - Não, Manuel Luís. Por certo, não foi. Mas qual a razão de tal pergunta agora?
- É que eu tiro o meu para cumprimentar esta gente que por nós passa e nos dá a saudação e tu nem o gesto fazes para fingir que vais tirar o teu, daí julgar que alguma diferença teriam os nossos chapéus!
Era assim, o meu pai! Espontâneo, franco, aberto ao mundo e aos outros.

No seminário ficaram famosas, durante alguns anos, as sabatinas nas quais participou. Era ágil nas respostas e sabia esgrimir os ataques oratórios, dando forma a um raciocínio rápido, sagaz, de aguda perspicácia para descobrir os pontos fracos do oponente. Para ele a Lógica e a Retórica andavam de mãos dadas de modo a servirem-se mutuamente. Desta forma, passados os primeiros anos, granjeou fama no seminário e o estatuto de bom estudante permitiu-lhe entregar-se a leituras mais profundas e afastadas dos temas programáticos. Pelos dezassete ou dezoito anos tinha, até, permissão para, depois de cumpridos os deveres religiosos, frequentar certos círculos literários e tertúlias de Angra do Heroísmo. Foi então que conheceu Vitorino Nemésio acabado de chegar de Paris. Nunca foram íntimos, mas tê-lo-iam sido se outros caminhos a Vida tivesse proporcionado ao meu pai. Contemporâneo e integrante das mesmas tertúlias foi Dutra Faria – que mais tarde se tornou notável, em Lisboa, pelo incondicional e sabujo apoio que deu ao Estado Novo.
Uma tertúlia e grupo literário que na época tinha relevo na velha cidade dos capitães-generais, sede de bispado dos Açores, era a de Os Prelúdios, revista mensal que publicava os trabalhos dos estudantes de Angra, mais dados às letras. Por detrás dela estava o poeta Gervásio de Lima, natural da Terceira, e, entre outros, Serafim de Chaves, distinguido nos jogos florais de 1924, que chegou a oferecer ao meu pai um pequeno livro de poemas com dedicatória bastante lisonjeira.
Para além das influências locais e da época, como poeta, o meu progenitor leu, de certeza absoluta – por ainda conservar em meu poder exemplares autografados – António Feliciano de Castilho, Almeida Garrett, Ramos Coelho e António Correia de Oliveira, para não referir, por ser demais evidente, Luís de Camões e Bocage.

Julgo que os anos de maior intensidade produtiva, enquanto poeta, na fase final da adolescência, terão sido entre 1924 e 1926; frequentaria, então, o oitavo ano do seminário. Tinha já recebido, nessa altura, as chamadas ordens menores ou primu tonsura, havendo passado do chamado ano filosófico para o nono e último do curso durante o qual os estudos se viravam para a Teologia.
A vida religiosa no seminário não era fácil e exigia sentido de disciplina. O meu pai ou tinha-o por estrutura natural ou por o haver adquirido com o treino e rigor que a si próprio sempre impôs. Foi nos jejuns e abstinências que adquiriu capacidade para se alimentar frugalmente, faculdade que bons serviços lhe prestou, alguns anos mais tarde, como à frente relatarei.

No fim do primeiro trimestre do nono ano, por altura do conselho escolar, o primo José Luís, já então sacerdote e professor de canto coral no seminário, avisou o meu pai de que havia ficado decidido enviá-lo para Roma após a conclusão do curso, em Setembro, para frequentar a Universidade Gregoriana e ali obter a licenciatura em uma das várias áreas por lá ministradas. Os custos seriam suportados pela diocese de Angra já que os meus avós não possuíam rendimentos suficientes para manter um filho tão longe de casa.
Em face desta nova e inesperada situação o meu progenitor teve um rebate de consciência, pois não admitia ir gastar tanto dinheiro à diocese quando, efectivamente, tendo vocação para ser seminarista não a tinha para ser padre e ir para Roma conseguir uma licenciatura para, depois de estar na posse de um diploma, se desvincular da vida sacerdotal. Era, segundo o que me afirmou, uma desonestidade que não calhava com a sua maneira de ser e de proceder.
Depois de ponderar com cautela a atitude a assumir, resolveu dar a conhecer junto dos responsáveis eclesiásticos a decisão de abandonar o seminário pelas razões que relatei. O bispo de Angra – que o ouviu atentamente – para além de lhe elogiar a honestidade, considerou que se tratava de uma crise passageira e que, por isso, poderia contar com o apoio da Igreja Católica onde estivesse e necessitasse, pois, é necessário esclarecer, nessa altura, por força do anticlericalismo republicano, o Estado não reconhecia qualquer habilitação literária aos ex-seminaristas. Desta forma, o meu pai nada mais possuía do que o exame da 4.ª classe feito com distinção!

Dada, por carta, a notícia para casa respondeu-lhe, na volta do correio, a mãe – em longa epístola que ainda guardo – que se considerasse órfão a partir daquele momento!
A sensação de frustração provocada na minha avó foi brutal, incapacitando-a de compreender um acto de honestidade do qual só se deveria orgulhar, mas a vaidade humana é uma terrível armadilha e ter um filho padre era, naqueles anos, um motivo de prestígio social e uma excelente solução prática para quem vivia tão longe de tudo, pois poderia tornar-se no pilar de sustentação das irmãs, levando-as para as paróquias onde fosse exercer o múnus sagrado. Tal como era hábito na época, uma, ficar-lhe-ia a cargo em permanência para o servir e governar a casa paroquial; às restantes ser-lhes-ia fácil encontrar marido com posição a condizer com o exercício sacerdotal do futuro cunhado. Sonhos e soluções construídos no vazio ruíram com a decisão inabalável do meu pai.

Da ilha Terceira partiu para Lisboa, com uma pequena mala de roupa, uma carta de recomendação do bispo de Angra e alguns cobres doados pelos professores do seminário. Vinha ao encontro de novas e bem mais duras realidades. Corria o ano de 1927. A ditadura militar estava no auge, o custo de vida disparava para valores assustadores, as assembleias de militares – em particular as dos tenentes – impunham condições aos ministros que procuravam gerir a situação, agradando a uns e a outros.
A carta recomendava a aceitação do meu pai como professor num colégio particular, dirigido por um laico, mas realmente dependente do patriarcado. Era o Colégio Liceu de Sintra, a funcionar num lindo palacete na zona de S. Pedro, no começo da encosta da serra. Seria pequeno o salário, já que receberia alojamento e alimentação em troca de dar aulas de Língua Portuguesa e da inscrição nos exames do Liceu Pedro Nunes, em Lisboa, quando fosse tempo de os fazer.
Situação paradoxal e complexa: ser mestre e colega dos alunos a quem ensinava. Só assim conseguiria habilitações oficiais que lhe dessem a possibilidade de prosseguir estudos superiores. Esse era o sonho.
As agruras da vida iam começar, dando corpo ao soneto premonitório que um ano antes havia publicado, com o pseudónimo de Manuel Avelar, em A Mocidade, ainda em Angra.

Nosso viver é árduo sofrimento
Que atinge a alta nota da tristeza;
Vai minando veloz e com largueza
As ilusões, deixando o desalento…

Pois se a vida é um sonho de incerteza
- Como de espr’ança pode haver contento?
Nela encontrar podemos, só, aumento
De triste desengano e de torpeza…

Como qual borboleta entontecida
Que vagueia contente, de flor, em flor,
Assim é nossa vida de amarguras!

Pois pretende e procura, esvaecida,
O remédio que só em ti, Senhor,
Se encontra, para as nossas desventuras…

Foi nesse ano de 1927, no Colégio Liceu de Sintra, numa festa lá acontecida, que o meu pai conheceu a minha mãe. O enamoramento foi discreto, mas imediato. Ele ainda não tinha feito vinte anos e nem ela os dezanove. Por estranha coincidência, também a minha mãe nascera a 4 de Dezembro.
Uma nova etapa da vida do meu pai estava a começar.

terça-feira, maio 1

3 - No centenário do meu Pai



Todo o filho, diz-se, é uma bênção para a sua mãe (infelizmente nem sempre foi assim ao longo dos tempos, porque, o principal é que seja desejado).
O meu pai, para além de uma bênção, foi uma excelente prenda para a minha avó, pois, num tempo e numa localidade em que os aniversários natalícios correspondiam só e somente ao dia em que se completava mais um ano de vida, ela foi mãe pela primeira vez. Mãe do meu pai. Foi no dia 4 de Dezembro de 1907. Fazia, então, 22 anos.
Natural da Fajã Grande, o seu nome de solteira era Maria Dias de Avelar. Pelo casamento com o meu avô, deixou “cair” o sobrenome Avelar e ficou Maria Dias de Fraga. Eu e a minha irmã – continentais e lisboetas – conhecíamo-la por avó Dias, ao contrário dos meus primos que sempre a trataram por avó Fraga.
Ao meu pai, no dia do baptizado – altura em que se procedia ao registo do nascimento, como era comum na época – foi posto exactamente o mesmo nome do seu pai, Manuel Luís de Fraga, por isso foi Júnior. Por ter sido o primogénito, esqueceram-se de lhe colocar o sobrenome da mãe. Não sei exactamente qual o motivo, mas o certo é que se encarregou de corrigir o lapso e, ao longo da vida, adoptou, em muitos dos seus escritos jornalísticos e poéticos, o pseudónimo de Dias Avelar.
Nasceu saudável, robusto e com físico para sobreviver à mortalidade infantil da época. Trazia só um pequeno defeito: na mão esquerda, a meio da falange do dedo mínimo, tinha implantado um outro que não articulava. Era uma excrescência desnecessária e inútil. A minha avó – e isto dá bem a noção da força e da coragem daquela mulher – com uma tesoura desinfectada, quando o meu pai ainda tinha poucas horas de nascido, procurou o ponto ósseo de inserção do dedo desnecessário e cortou cerce o que estava a mais. Fez-lhe um penso com os unguentos da época, e entregou à graça de Deus – como naquelas ilhas era costume dizer – a cura da amputação feita. Rapidamente sarou e o que ficou foi um pequeno alto semelhante a uma verruga… coisa que nem se notava!
Na freguesia não havia médico e se houvesse na ilha, estaria em St.ª Cruz, a muitas horas de viagem pelo belíssimo interior, os chamados matos.

Cresceu saudável o meu pai, até ter sarampo, que curou com os cuidados tradicionais, mas que, por sua culpa – foi brincar para o chafariz fronteiro à casa paterna – na fase de convalescença, lhe trouxe uma bronquite asmática da qual nunca mais se livrou, embora eu não tenha assistido a qualquer crise de falta de ar, por razões que mais à frente relatarei.
A vida do casal – Maria e Manuel Luís – corria lenta e ao ritmo do trabalho rotineiro, mas o meu avô era um homem de ambições; viver das poucas terras que possuía não lhe agradava e essa foi a razão que o levou a, depois de novamente engravidar a minha avó, partir para os EUA, em busca do pecúlio que lhe daria para mudar o estatuto herdado. Foi, e só voltou cinco anos depois. Em 27 de Março de 1909 nasceu a minha tia e madrinha a quem a mãe pôs nome igual ao seu – Maria Dias de Fraga. Ficaram os três a viver na Fajã Grande do dinheiro que chegava da Califórnia, do peixe pescado no mar, logo ali ao fim da rua, da carne do porco que na pocilga comia batata branca e os restos das refeições da família e das rendas das terras que o casal tinha suas. Não sendo fácil, também não era preocupante o dia-a-dia.

O meu pai habituou-se a ter toda a atenção da mãe nesses cinco anos que lhe terão parecido uma vida longa. Os três entendiam-se maravilhosamente e a minha avó era pessoa dada a falar – o que estava no extremo oposto do marido, que só abandonava os seus longos silêncios por necessidade ou por achar conveniente – facto que terá, para além dessa coisa maravilhosa que se chama genética, desenvolvido no meu progenitor o saudável hábito de conversar, colocando-o nos antípodas da postura paterna. Nos seus cinco ou seis anitos, o menino Manuel Luís deixava as senhoras – novas e velhas – da freguesia verdadeiramente extasiadas tal era a sua desenvolta oratória. Achavam-lhe graça e era já tido por uma criança inteligente.

O regresso do pai, vindo dos EUA, foi para ele um pequeno choque que sempre referiu ao longo da vida. De repente era substituído por um cavalheiro, chegado não sabia de onde, perante quem havia de estar calado, guardando um silêncio respeitoso. E tinha de lhe chamar pai! Adaptou-se a custo.

Ia a caminho dos sete anos e, pelo mês de Março, nasceu-lhe outra irmãzinha a quem se prendeu com grande ternura.
É curioso que entre ele e Maria havia a cumplicidade dos anos em que haviam sido o alvo de todas as atenções da mãe. Dele para Águeda – assim foi baptizada a terceira descendente do casal Fraga – havia um grande carinho, a ponto de me recordar ter ouvido o meu pai afirmar ser aquela era a sua irmã favorita.
De todos os restantes irmãos – mais três – eram as duas que se lhe seguiam em idade as que tinham permissão de o tratar por tu… aos outros estava reservado o distante e cerimonioso tratamento por senhor! Foi muito cedo que o meu pai desenvolveu um fortíssimo sentido de autoridade e respeito.

Por essa altura – em 1914 – terá ido frequentar as aulas do velho professor de letras e números que habilitava com o exame da chamada 3.ª classe. Era, segundo recordo ouvir contar, um bom homem, distraído, que muitas vezes procurava por todo o lado, com grande afã, os óculos de ver perto, afinal deixados na testa por distracção. Nessas alturas as risadinhas dos gaiatos eram incontidas na pequena sala onde todos iam aprendendo o modo de conhecerem o mundo sem saírem daquele lugarejo perdido nas lonjuras do Atlântico. Manuel Luís sabia as lições, destacando-se dos outros seus companheiros.
Aos domingos, quando toda a família ia, enfarpelada a rigor, assistir à missa, o primogénito chegava a casa e repetia, para quem o quisesse ouvir, o sermão do celebrante, quase tintim por tintim, com todas as explicações bem percebidas e sabidas. O petiz era, realmente, fora do comum. Contudo, isso não o livrava dos pequenos trabalhos agrícolas que uma criança podia executar: carregar com os fardos de feno para fazer a cama das vacas, entretanto compradas com as economias trazidas da Califórnia. Mas não só para vacas deu o labor de cinco anos nos EUA.
O meu avô, para além de adquirir terras de lavoura, mandou construir duas azenhas, que ainda lá estão – uma a seguir à outra – na ribeira das Casas. Isso deu-lhe estatuto na freguesia e na ilha, pois passou a pertencer ao pequeno grupo de cidadãos pagantes de contribuição industrial. Não se alterou a vida da família, mas o desafogo era maior.

No ano de 1917, a 7 de Outubro, nasceu o primeiro irmão do meu pai: o tio Tobias, o último a falecer, com a idade de oitenta e oito anos. Estaria, por essa altura o meu progenitor a acabar a 3.ª classe e não mostrava grande vontade, nem empenho, nos trabalhos agrícolas ou de moagem.
O padre da paróquia, vendo-lhe a inteligência no olhar, sugeriu que a criança fosse a St.ª Cruz submeter-se ao exame da 4.ª classe para, mais tarde, poder ser admitido no seminário de Angra do Heroísmo. Estava ali, quase pela certa, uma vocação sacerdotal. Semelhante parecer era o do mestre-escola que o achava habilitado para se sujeitar à «dura» prova a fazer na vila.
Em face de tantos conselhos e pareceres e sob os rogos da minha avó, lá se dispôs o Manuel Luís Sénior a levar o seu rebento até St.ª Cruz. Era a primeira vez que o meu pai saía para tão longe da sua terra natal.

Para chegar à vila havia que atravessar a ilha de lés a lés e todo o percurso era feito a pé. Na ida, pai e filho não trocaram entre si qualquer palavra. Depois de se alojarem em casa de familiares, na manhã seguinte, o meu pai fez as provas que lhe cabiam.
Devo dizer que tais exames constituíam um acontecimento, naquela época, mesmo na vila de St. ª Cruz: tratava-se de uma efectiva mudança de estatuto e só a ela se sujeitava quem se destinava a continuar os estudos fora da ilha das Flores.
Segundo parece, a pequena sala de aulas da escola encheu-se com curiosos que queriam avaliar das qualidades do pretendente a «gente letrada». Foi brilhante a prova oral e o meu pai saiu aprovado com distinção.
Se a honra era grande para o candidato menor não era para os familiares, pois passavam a contar com alguém com um diploma só obtido na sede do concelho. Todos os conhecidos e parentes felicitavam o meu avô pelo brilhantismo do meu pai.
No regresso, mais seguro de si, o pequeno Manuel Luís optou por conversar com o seu sisudo progenitor. Falaram mais alto os genes maternos e a vaidade da pequena grande vitória. Iam largos os quilómetros andados e o que devia ser um diálogo não passava de um longo solilóquio bruscamente interrompido pelo meu avô que, com secura, disparou:
- Passado com distinção… Como se isso valesse alguma coisa!
Emudeceu o meu pai e toda a satisfação teve de ser guardada para a manifestar quando estivesse com a mãe.
Muitos anos mais tarde, relembrando o episódio, dizia-me que, na altura lhe custara a quase crítica do pai, mas, recordando-o tal qual ele era, sabia, então, a imensa satisfação que lhe havia dado e, acima de tudo, o orgulho que lhe proporcionara por chegar à Fajã Grande e, na roda das conversas dos homens e pais, ser alvo de atenções de todos que o felicitavam. O nível de exigência do meu avô era muito grande – para si mesmo e para os filhos!

Depois de conseguido o diploma oficial de aprovação na instrução primária podia o sacerdote da Fajã tratar de tudo para o ingresso do pequeno Manuel Luís no seminário de Angra. Corria o ano de 1918.
A despedida foi difícil, dolorosa, mas cheio de esperança em si e desejoso de descobrir novos horizontes, lá partiu o meu pai para a ilha Terceira. Com ele levava os sonhos da mãe para quem a vaidade de ter um filho padre era maior que tudo, pois ser sacerdote da Igreja Católica naqueles tempos – mesmo levando em conta todo o anticlericalismo da República – era, nos Açores, possuir um elevado estatuto social pelo ascendente que se passava a ter sobre os paroquianos. Além de tudo o mais, muita gente tinha a certeza da excelente figura que o Manuel Luís ia fazer no meio estudantil de Angra do Heroísmo.

Não sei se o sacerdote da Fajã Grande que tanto papel teve na entrada do meu pai no seminário se chamava Francisco Vieira Bizarra, mas presumo bem que sim, pois encontrei publicado no jornal O Florentino, datado de 1924 (talvez escrito em Março), este soneto dedicado à sua memória onde se pressentem, na temática, as influências de Camões e o peso de uma infantilidade que outros mais tardios já não têm:

Guiavas tu bondosa e docemente,
O rebanho que te fora confiado,
Como faz bom pastor com alegria
Às ovelhas que conduz ao prado

Mas a morte cruel, impiedosa,
A ninguém no mundo há que isente,
Levou-te d’entre nós, levou-te ao Céu,
Onde repousarás eternamente

Sim!... no céu onde subiste descansa,
Mas de nós nunca percas a lembrança,
Junto a Deus que por nós intercede

Pede-lhe para o teu rebanho
Um manancial de graças tamanho
Onde, de amor, sacie a sede.

Tendo procurado entre o seu espólio escrito, este soneto é o mais antigo que encontrei, mas não acredito que só aos dezassete anos haja iniciado as suas tentativas literárias. Por certo, terá rabiscado as primeiras quadras bem mais cedo. O estudo das humanidades e da literatura ter-lhe-ão mostrado que, afinal, as saudades da terra, da família e dos lugares que estimava podiam ser expressas em frases curtas, com rima e métrica. Mudou-lhe a Vida certos hábitos, mas não lhe destruiu a alma de poeta.

quarta-feira, abril 25

2 - No centenário do meu Pai


Certamente o leitor nunca se interrogou sobre qual é a povoação mais ocidental da Europa. Mas se, por um acaso, já alguma vez se lhe colocou esta dúvida, quase pela certa terá pensado no continente europeu e jamais no arquipélago dos Açores. Pois é. Na distante ilha das Flores, virada para o continente americano situa-se a freguesia da Fajã Grande, localidade mais a ocidente na Europa.

Também poucos são os portugueses que se dão ao trabalho de consultar o dicionário para procurar saber o que é uma fajã. Se folheassem esse pesado livro onde se compilam os significados do vasto léxico por nós usado dariam com a seguinte explicação: «fajã: terreno plano, cultivável, de pequena extensão, situado à beira mar, formado de materiais desprendidos da encosta». Por mera curiosidade, posso acrescentar que é um termo próprio dos Açores e de origem desconhecida.

Então, a localidade da Fajã Grande, por definição, fica à beira mar e tem atrás de si uma encosta que, no caso vertente, é uma alta arriba escarpada de onde correm duas ribeiras – a das Casa e a do Cão – que se despenham à vertical para correrem rumo ao oceano. É um aglomerado de casas dispersas, formando pouco mais do que meia dúzia de arruamentos.
Para lá chegar ou se vai de barco ou de automóvel, deixando-se para trás, sem nela se ter entrado, uma outra pequena urbe de nome Fajãzinha. No Verão, de preferência em Julho, se não chover e o céu não estiver carregado de nuvens, a paisagem que se desfruta do alto da rocha sobranceira à Fajãzinha é idílica, pela beleza do colorido da vegetação – onde abunda o verde, o azul e o rosa das hortênsias – e pela grandiosidade do confronto entre o mar imenso, o silêncio só cortado pelo voo e grito das aves e o marulhar distante da cascata de água cristalina que forma a Ribeira Grande.
Quem vem de automóvel para a Fajã Grande entra pela Assomada para vir desembocar na Rua Direita, no enfiamento da anterior; passa-se pelo largo e tem-se, a meio caminho, a igreja e, por detrás, o cemitério. Mais adiante a Casa do Espírito Santo (de fora) e as bifurcações para a Tronqueira e a Via d’Água.
Só já na Rua Direita os edifícios – de baixa estatura, não vão além de um primeiro andar – estão ligados uns aos outros, porque, antes, separam-se por pequenos quintais onde ainda se cultiva algum alimento para consumo da casa.
Foi lá ao fundo, na Tronqueira, quase já próximo do caminho que conduz ao começo da larga baía onde desagua a Ribeira das Casas, bem de frente para a imensa queda de água que se despenha da alta rocha de 90 metros, numa casa desnivelada em relação à rua, que o meu pai nasceu no dia 4 de Dezembro de 1907.

Não seria a Fajã Grande muito diferente, há cem anos, do que é agora, salvo os benefícios que a tecnologia introduziu naquela distante ilha. As diversões poucas ou nenhumas, convidavam a uma vida que se distribuía entre o trabalho – não muito apressado pois os ritmos da Natureza são lentos – e uma religiosidade que se praticava na igreja matriz, construída, em 1868, sob a invocação de S. José, no lugar onde já existia uma pequena capela, erigida em 1755, também dedicada ao putativo pai de Jesus.

As constantes chuvadas e a humidade relativa sempre deram àquelas terras um extraordinário poder fértil. Cresce o pasto em abundância, o que convidou a que os mais afortunados tivessem uma ou duas, às vezes, três vacas de ordenha que também serviam nos trabalhos do campo. Nas leiras próximas das casas, ou mais distantes, cresceu e cresce o milho e menos o trigo.

Frequentar o ensino primário era uma obrigação que todos cumpriam na falta de outros trabalhos. Mas não era rentável ter um mestre-escola capaz de ir muito além das primeiras letras e das contas. Esse era o motivo por que, para ser aprovado no exame da chamada 4.ª classe, havia que o candidato se deslocar à vila de St.ª Cruz onde residia o professor com competência para aquilatar do saber e passar o respectivo diploma. Coisas que já só a imaginação concebe, nos tempos que correm!

Engastada entre verdura
Daquele bosque de além,
Qual diamante fulgura
A terra da minha mãe…

Terra de graça e ventura!
És minha terra também.
Viste-me, tu, com brandura,
Vir ao Mundo, ser alguém.

Volveram-se anos, parti…
Mesmo longe de ti
Onde o Destino me mande

Nunca mais te hei-de esquecer
Mas sempre bem-dizer
Minha aldeia Fajã Grande.

Foi assim, em poesia simples, quase ingénua, que o meu pai, rondaria os vinte anos de idade, escreveu na revista Os Prelúdios, que se publicava em Angra do Heroísmo as saudades que o roíam da freguesia. Estava, então, prestes a deixar para trás o seminário e a despreocupada vida de estudante de que sempre gostara. Vocação sacerdotal não a tinha, como o atestam os versos que pela mesma época escreveu, mas não publicou.

Duas fadas que passavam
Em noite de lua cheia,
Sozinhas ao pé da aldeia,
Deste modo conversavam:

- Vamos colher muitas rosas
Na rainha das roseiras,
De todas as mais Formosas
Como colhem as romeiras?

E desfolharam as rosas
Que colheram de mão cheia
- Rosas frescas, tão viçosas!

E em noite de lua cheia
As folhas – todas mimosas –
Foram as moças da minha aldeia…

Os sonhos da juventude, a distância da terra natal, as saudades da família – especialmente da mãe que adorava – a ambiência intelectual da velha cidade capital do arquipélago, ter-lhe-ão despertado o gosto de fazer poesia. Todavia, como mais tarde provou, viria a ser no jornalismo a sua primeira área de afirmação.
Foi vendo o seu exemplo e ouvindo, com atenção, as suas longas palestras – que os amigos escutavam com prazer – que em mim nasceu o desejo de lhe imitar o talento. Mestre na arte de me ensinar a viver, o meu pai foi, também, um severo crítico da minha prosa. Com ele aprendi muito.

segunda-feira, abril 23

1 - No centenário do meu Pai

A 4 de Dezembro próximo, passa o centenário de nascimento do meu pai.
Há anos, pensei prestar-lhe uma homenagem bem mais luzida do que esta; esta que vai ficar aqui na blogosfera para quem quiser dela desfrutar. Imaginava-me com forças e paciência – acima de tudo, paciência – para compilar as muitas crónicas que foi publicando na imprensa regional e, depois de seleccionar as que tivessem maior actualidade, procurar os devidos apoios para publicar um livro; um pequeno volume que deixasse, mais uma vez, o seu nome nos catálogos da Biblioteca Nacional. Seria um marco para reavivar o passado e um pequeno luzeiro para todos quantos quisessem orientar-se pela opinião de um Homem vertical. Confesso, faleceram-me as forças que me iriam animar a necessária paciência para tal empresa. Outros desafios se me foram colocando e o sentimento de gratidão – ainda bem vivo em mim – decaiu no seu propósito. Assim, modifiquei os planos, alterei as rotas, corrigi os rumos e optei por ir juntando neste blog lembranças, recordações, escritos e deitar tudo neste espaço onde todos chegam gratuitamente, animados pela curiosidade ou empurrados pela força do acaso. Não figurará o seu nome no catálogo da Biblioteca Nacional, mas derramar-se-á por todos os continentes, esperando os olhos ávidos de leitura, de leitura na língua de Camões.

Seria lógico que começasse a homenagem, dizendo quem foi, quem era, o meu pai; acima de tudo, seria curial que iniciasse a narração pelo princípio, isto é, pelo dia 4 de Dezembro de 1907. Não o vou fazer assim. E não o faço, pois iria incorrer na vulgaridade e o meu pai, ainda que quase um anónimo no país, ainda que só conhecido de alguns – a maioria já não pertence ao número dos vivos – não era vulgar. Aliás, julgo que, quase para todos nós, o nosso pai nunca é vulgar! Então, o meu, por razões que não são as de toda a gente, era menos vulgar ainda.

Os meus sonhos, como nuvens, vão dispersos
- São pombas que fugiram de um pombal –
Seguindo rumos vários, já imersos,
Na senda de inclemente vendaval…

Sonhos loucos, criados nos reversos
Da cunhada medalha do Irreal,
Procuram, em tropel, mundos diversos
Em longa caminhada sideral.

Gótica catedral, por mim erguida,
Em cada ogiva pus, como em guarida,
Um sonho, uma ilusão, uma quimera.

Desfez-se a catedral – era de espuma,
Das minhas ilusões ficou só uma,
Incerta da Certeza que eu quisera!

Um Homem prático, quase, aparentemente, frio e com pés de chumbo, calcando as pedras que a Vida lhe colocou nos trilhos que teve de percorrer, o meu pai deixou para nós, para a posteridade, esta prova, este testemunho de uma alma capaz de sonhar! Afinal, sonhou, sonhava, mas a realidade de um dia-a-dia eriçado de dificuldades, cravando-lhe os espinhos aguçados de um pão que tinha de ser suado, dispersaram-lhe a capacidade onírica que nele restava.

E o soneto que deixo hoje aqui não o escreveu no ardor da juventude – nem o poderia ter feito, tal o misto de sentimentos lançados ao papel. Não. Saiu-lhe da esferográfica a meses de completar sessenta anos de idade. É o grito de quem viveu espartilhado entre a obrigação e a ânsia de ser livre. É a dureza de quem olha já o fim sem ter podido começar por onde se inicia a caminhada. E, como a Vida é cruel, cheia de surpresas, plena de esquinas quando se julga estar a calcorrear seguras rectas, ele, o meu pai, o Homem que viu a sua catedral desfeita em espuma, morreu treze anos depois!

Atrás de si deixou, em nós, um grande vazio. A nossa saudade, as minhas saudades foram pazadas incapazes de encher esse espaço, esse imenso buraco que o tempo disfarçou, mas jamais esqueci o sentimento de ter uma muralha a segurar-me mesmo quando se me começavam a encanecer os cabelos. O meu pai era essa imensa muralha, mais longa do que a da China e mais alta do que a de qualquer castelo roqueiro.

quinta-feira, dezembro 28

A pena de morte

A Saddam Hussein foi reconfirmada a sentença à morte por enforcamento. Motivo? O extermínio de 148 xiitas ordenado por ele. Tão somente isto foi suficiente para o sentenciar à pena capital. E digo, tão somente isto, porque desde a invasão do Iraque por forças norte-americanas e britânicas já morreram milhares de pessoas em resultado das mais diferentes causas, mas todas relacionadas com a ocupação do país. Claro que resisto à tentação primária de perguntar quantos dos responsáveis por todo este morticínio deveriam ser condenados à forca? Não. Não caio nessa tentação, porque fazê-lo era igualar-me a todos quantos aceitam a condenação à morte como forma de punir os grandes criminosos.
Saddam Hussein foi um facínora, um ditador cruel que eliminou fisicamente quem se lhe opunha, que mandou matar gente inocente por pertencer a grupos religiosos diferentes do dele ou a etnias distintas da sua, que governou com mão de ferro. Foi tudo isso, é certo, contudo, sentenciá-lo à morte não traz à vida todos quantos morreram por força da sua vontade e simplesmente denota um sentimento de vingança que iguala os juízes ao réu. Invocam-se razões humanitárias para julgar o ditador e, em seguida, matá-lo.
Ocorre perguntar: - Onde está o sentido humanitário de quem condena à morte um outro ser humano? Em termos absolutos uns e outros não estarão a actuar de forma igual? Ontem era o ditador quem, por razões de Estado, de segurança, de política interna, mandava matar; hoje, em nome da democracia, condena-se o vencido a morrer antes da Natureza lhe pôr cobro à vida. Onde está a lógica? Por mim, só vejo, muito claro, um sentimento de vingança. Uma vingança mesquinha.
E pressinto que alguns dos meus leitores abanam as cabeças ao lerem as linhas anteriores. Abanam em sinal de não aceitação das minhas razões. Para esses a pena de morte deve ser executada quando serve para punir um criminoso, um bárbaro criminoso, mesmo que tenha agido em nome da razão de Estado. Todavia, também sei que de entre muitos que não me compreendem existem acérrimos defensores do direito à vida quando se trata de permitir e liberalizar o aborto. Defendem, com toda a força da sua argumentação, que um feto tem direito a viver, que é um crime acabar com uma vida que ainda não tem registo como cidadão.
Pergunto: - Onde está a coerência? Onde está a coerência de se aceitar a pena de morte aplicável a um criminoso e não aceitar a liberalização do aborto?
Terá, por acaso, o feto consciência de si mesmo? E o criminoso? Será que o Saddam Hussein de hoje é exactamente igual ao mesmo homem que há dez anos mandava matar, sem comiseração, centenas ou milhares de pessoas?
Do mesmo modo que a mulher que faz um aborto pode ficar traumatizada, para toda a vida, pelo peso do remorso, também teremos de admitir que, ao perder o poder e ao ganhar consciência da dimensão dos seus crimes, o assassino passa a viver atormentado pelos seus fantasmas. Depois do aborto e depois da condenação quer a mulher quer o assassino são pessoas diferentes; não são exactamente os mesmos que eram antes da prática dos actos que lhes fizeram nascer o remorso e o sentimento de culpa. E não há tribunal nenhum que consiga pesar e avaliar o remorso, o arrependimento. Assim, também ninguém pode afirmar que a mulher que faz um aborto e o criminoso que é condenado são iguais ao que eram antes, que repetiriam os seus actos se soubessem que poderiam ter de passar pelo mesmo tormento interior.
Dirão alguns: - Há assassinos que são verdadeiros psicopatas! Claro. Também há mulheres para quem o aborto se banalizou de tal forma que não têm qualquer tipo de remorso nem consciência do seu acto. Mas isso justifica tratamentos diferenciados ou semelhantes?
Os psicopatas tratam-se, não se matam, privam-se de liberdade para sempre, afastam-se da sociedade onde não sabem viver.
Saddam Hussein merece a prisão perpétua – tal como a mereciam, provavelmente, noutras circunstâncias, alguns daqueles que o mandaram julgar – contudo, o medo que rói os seus algozes é tanto que preferem vê-lo morto. Morto não ressuscitará; vivo, em cumprimento de pena perpétua, pode um dia ser indultado e ser posto em liberdade. Isso, para quem o manda julgar, é inadmissível. Ora, se o é, a justiça que invocam tem um só nome: vingança. E, estranhamente, ao contrário do assassino e da mulher que mata o feto que transporta, vão dormir repousadamente – tão repousadamente como dormia Saddam Hussein quando dono do Poder mandava matar em nome do bem-estar da sociedade – tal é a consciência que têm de um dever social correctamente cumprido!
Se a vida é dada ao Homem pela Natureza só esta lha pode tirar. Democracias assentes em direitos à pena de morte são aberrações que nos tempos de hoje não podem nem devem ser aceites. Não há crime que a justifique.

domingo, dezembro 17

Pinochet, eu e a censura

Pouco passava do meio da minha comissão militar em Moçambique, corria o ano de 1968, quando vi pela primeira vez o meu nome a encabeçar uma crónica nas páginas de um jornal.
A minha estreia foi feita pela mão exigente, mas bondosa e protectora, do meu Pai. Foi ele quem me iniciou nesta coisa de escrever para os outros e me incentivou no caminho do jornalismo - mesmo que não profissional. Devo-lhe o facto de ter publicado a primeira crónica nas páginas do mais antigo jornal português: o Açoriano Oriental. Crónica ingénua como tudo o que se escreve na juventude e quando se vive animado de ideais grandiosos (que o tempo e a experiência se encarregam de esbater). Contudo, logo no primeiro escrito publicado senti a acção do lápis azul da Comissão de Censura Prévia. Cortaram e retalharam algumas frases e ideias que o chefe de redacção, propositadamente, não compôs para se perceber - e eu também - a descomunal ignorância e insensibilidade dos censores.
Ao contrário do que terá acontecido com muitos estreantes, não desisti; antes pelo contrário, esse acto dos vigilantes da palavra e do pensamento, no Portugal da ditadura, acicataram-me a vontade e o desejo de refinar o jeito de dizer o que queria, passando nas malhas da sua monumental ignorância e ausência de perspicácia dos censores.
Os anos correram. Passei a colaborar regularmente, também, com a Gazeta de Coimbra, que várias vezes me honrou ao atirar para editorial muitas das minhas crónicas. Regressei a Moçambique, pela segunda vez, e lá recebi convite de gente conhecida e ligada à Emissora do Aero-Clube da Beira para com eles colaborar. Colocou-se-me uma questão, que passo a expor.
Escrever para uns jornais de pequena divulgação nacional - quer o Açoriano Oriental quer a Gazeta de Coimbra não chegavam a Lisboa, às bancas de venda pública da imprensa, por se tratarem de folhas regionais que cumpriam o seu importante papel localmente - era, para mim, na época tenente e capitão, pouco relevante, pois não punha em causa a minha estabilidade na vida militar. Contudo, numa pequena cidade como era a Beira, no ano de 1973, onde toda a gente se conhecia, já se tornava problemática uma visibilidade excessivamente pública. Pensei como havia de tornear a situação. Fiz duas opções: em primeiro lugar, escreveria uma crónica por semana sobre política internacional - bastante mais inócua do que os faits divers nacionais; depois, escolheria um pseudónimo. Com esta camuflagem estaria, julgava eu, mais ou menos “encoberto” dos ouvidos dos comandantes das unidades da Força Aérea estacionadas na área da cidade. Acresce que a confiança política nos responsáveis pelos programas radiofónicos era tal – e, em especial, no engenheiro Jorge Jardim verdadeiro “dono” da emissora – que tudo o que se dizia não precisava de ser previamente autorizado pela censura.
Assim, lá comecei, sob a “capa” de Luís de Avelar, a debitar as minhas opiniões sobre o que se passava pelo mundo. A princípio, gravava a crónica, mas mais tarde, depois de ter adquirido prática e de saber como controlar situações inesperadas, passei a fazer a leitura dos meus textos em directo.
Pelos canais que os promotores de programas de rádio tinham, naquela época, para sondar a opinião pública fomos sendo informados da audiência do meu comentário semanal. Havia gente que gostava das minhas intervenções e esperava com ansiedade a quarta-feira, depois das 21 horas, para escutar a minha crónica. Da censura, nem novas nem mandadas! Se ouviam, ou não percebiam ou não encontravam matéria para discordância. No entanto, já assim não aconteceu com o comandante do Batalhão de Caçadores Pára-quedistas – unidade onde estava colocado – pois mandou o oficial de operações inquirir-me quanto ao facto de eu falar na rádio. Não escondi, assumindo a responsabilidade, embora me tenha escudado no uso do pseudónimo inibidor de se relacionar o autor das crónicas com um oficial da Força Aérea. O assunto ficou esquecido, embora soubesse que tanto aquele oficial como o comandante do Batalhão eram meus fiéis ouvintes. Não, por certo, com o desejo de me escutarem, mas para garantirem que eu não era um elemento subversivo infiltrado nas fileiras da unidade.

Quando Augusto Pinochet tomou de assalto o Poder político no Chile, como não podia deixar de ser, fiz o meu comentário centrado na figura de Salvador Allende e no quanto tinha querido trazer os mais desfavorecidos elementos da sociedade chilena para o limiar do bem-estar, através da aplicação de medidas de justiça social.
Dessa vez, face à actuação bárbara e oportunista dos militares, deixei-me levar pela emoção e escrevi sem rebuço o que pensava. Expliquei que se derrubara uma democracia para se implantar uma ditadura, que a humanidade ficara mais pobre por se terem alcandorado ao mando de um Estado militares que não iriam respeitar as liberdades mais essenciais. Enfim, disse o que era esperado calar-se, tanto mais que o fazia na segunda maior cidade de Moçambique, território onde se combatia pela libertação colonial.
Dessa noite em diante os meus textos tiveram de passar a ser previamente censurados. Era o único em toda a Emissora do Aero-Clube da Beira a quem tal se impunha. Confesso que, ao contrário de me moderar, embraveci no teor dos meus comentários. Passei foi a usar de toda a artimanha de que já me socorria em Portugal para ultrapassar o raciocínio rectilíneo dos censores. Disse sempre o que quis, contudo de uma maneira mais encapuzada, onde as pausas, os silêncios e as inflexões de voz dessem aos textos os sentidos que os olhos dos míseros censores não conseguiam vislumbrar.
Como se vê, lá de tão longe, Pinochet também conseguiu que me tentassem calar. Não lograram os esbirros nacionais fazê-lo, pelo menos na medida em que o desejavam.
A Liberdade tem a força da Fénix, renasce das próprias cinzas.

quarta-feira, novembro 29

Eu, o surrealismo e Mário Cesariny de Vasconcelos

Morreu, no dia 26, com 83 anos uma das mais destacadas figuras da corrente surrealista portuguesa: Mário Cesariny de Vasconcelos.
Posso dizer que não o conheci pessoalmente o que corresponde a uma quase verdade e, ao mesmo tempo, a uma quase mentira. Vejamos esta afirmação paradoxalmente verdadeira.
Na idade em que se «conhecem» as pessoas nunca contactei com Mário Cesariny, isto é, na idade da razão não tive o ensejo de lhe falar, de estar perto dele. Contudo, na minha meninice, pelo menos uma vez, estive com o poeta. E foi no dia mais marcante do movimento surrealista português. Não foi um encontro feliz, mas teve algo de quase surreal. Eu conto.
Tanto quanto me lembro, corria o ano de 1948 quando se fez a primeira exposição surrealista em Portugal (aqui, entenda-se, Lisboa!). Foi num prédio de esquina, quando se vem de «eléctrico» da Graça para a rua da Conceição, mesmo na volta da Sé, frente às traseiras da casa onde, tradicionalmente, se diz ter nascido St.º António. Foi ali, creio, no segundo piso. Tinha eu seis anos.
Um meu primo, treze anos mais velho, o Fernando Alves dos Santos, fazia parte do grupo dos surrealistas (Diário Flagrante, 1954 e Textos Poéticos, 1957).
Jovem culto, de espírito aberto, vivendo uma rebeldia que os anos e o afastamento da actividade literária acabaram matando, o Fernando estava exultante com a exposição. Convidou toda a família para ir, em quase romagem, até à Sé, quer dizer, até ao largo da Sé, para ver com atenção e cautela a produção daquele pequeno núcleo que ousava romper com tradições e paradigmas. Entre ele e o António Maria Lisboa havia uma longa amizade que vinha dos tempos da escola primária e aquele, a par com Cesariny, era um dos grandes esteios deste grupo inicial.
Para a exposição, o Fernando contribuíra com vários desenhos, alguns poemas e um velho baú que havia pertencido ao meu avô e o acompanhara em todas as expedições militares que fizera a África e a França; por dentro forrava-o um papel de cores garridas, mas já debotadas pelos anos. O Fernando via nele todo um mundo de fantasia e sonho que eu, nos meus poucos anos, por mais que olhasse só distinguia o que realmente conseguia ver. Nada mais! Depois, fazia-me imensa confusão aqueles desenhos de olhos fora dos rostos, os corpos sem pernas nem braços, mas com enormes buracos no tronco ou na barriga, os braços fora de sítio, ora sobre as cabeças ora quase no lugar das pernas. O meu primo bem catequizava a irmã dele e a minha, tentando despertar-lhes o entendimento para o que elas não compreendiam e eu, miúdo, desejoso de perceber as conversas dos adultos, menos ainda. Da família, só o meu pai parecia disposto a «entrar» naquela quase loucura, como então, os ignorantes da época, achavam tais manifestações de arte.
Uma noite – julgo que terá sido mesmo na da abertura oficial da exposição – lá fomos, o meu pai, a minha irmã, aquele que acabaria por ser meu cunhado e eu, da zona da Graça, onde morávamos, até ao largo da Sé para vermos os trabalhos dados à mostra desta Lisboa ignara e arredia do que lá por fora era já bem conhecido. Lá fomos, pois, assistir ao acto, creio, inaugural com récita de alguns poemas pelo Mário Cesariny de Vasconcelos. Sentámo-nos nas primeiras filas de cadeiras, bem próximo do ponto onde o anfitrião ia dar a conhecer algumas das suas produções. Aí começou a minha e, provavelmente, a desgraça do Cesariny. Torno a contar.
Atento ao que se dizia, talvez excessivamente atento, a dado passo reparo que o orador declamava um poema sobre coisas estranhíssimas tais como escrever num papel com uma caneta sem tinta ou vice-versa (porque, para o efeito, é indiferente)... Era um discurso perfeitamente incoerente, incompreensível – nos parâmetros pelos quais a minha sensibilidade artística se pautava então – que me pareceu dito por um louco varrido. Na minha mais pura inocência desfraldei-me em risos incontidos, gargalhadas sonoras que levaram o meu pai a impor-me imediato silêncio visto o Cesariny ter interrompido a leitura, face a tão «inaudita» atitude de uma criança. Calado ele, calei-me eu. Retoma o poeta a palavra e continua a sair-lhe pela boca tudo quanto eu achava incoerente e de novo rebento em gargalhadas. Desta vez o Mário Cesariny de Vasconcelos, fuzilando com os olhos o meu progenitor enquanto o meu primo Fernando Alves dos Santos quase arrancava a farta cabeleira de tanto se arrepelar, pediu, em tom irrecusável, que o pai da criança a levasse para fora da sala.
Lá fomos os dois. O meu pai apelou a todo o meu bom-senso infantil e voltámos passados uns minutos. Ficámos de pé, lá no fundo. A leitura continuava e, mais uma vez, não tive travão na gargalhada cristalina que me saiu boca fora. Foi, de facto, a última. O meu pai arrastou-me para o patamar da escada, fora de portas, de modo a conter-me o riso que, em mim, sempre foi fácil.
O Fernando Alves dos Santos morreu há 14 anos – curiosamente também em Novembro – se calhar sem nunca, no fundo de si, me ter desculpado o pouco respeito pela nova corrente literária e artística que também ele ajudara a fazer despontar em Portugal. Naturalmente, o Cesariny terá esquecido o episódio, ou talvez não. Verdade é que não se me apresentou ocasião para lhe recordar o facto e pedir-lhe desculpa pela minha inocente e quase surreal sessão de gargalhadas.