domingo, maio 6

4 - No centenário do meu Pai



Retomando o relato mais ou menos biográfico do que foi a vida do meu pai, pouco ou nada posso dizer quanto a pormenores do tempo que passou no seminário de Angra do Heroísmo. O que sei, são elementos dispersos, não contextualizados. Contudo, creio que valerá a pena deixá-los aqui, pois servirão, no mínimo, para ajudar a traçar uma fotografia – incompleta e de maus contornos – do que era a vida de um seminarista no começo do século xx, pelas décadas de 10 e 20, na ilha Terceira.

Segundo parece, logo nos primeiros tempos de integração nos estudos secundários, o meu pai começou a demarcar-se dos restantes colegas pela sua natural capacidade de estudo e aprendizagem. Deve dizer-se, no entanto, que era maior a sua apetência para as humanidades do que para as ciências exactas; as matemáticas, as físicas e as químicas que se estudavam no seminário – já de si poucas em dimensão científica e em profundidade de conhecimentos – não o atraíam. Deleitava-se com a aprendizagem da Língua Portuguesa, do Latim, do Francês, da Literatura (naturalmente condicionada pelas restrições institucionais do estabelecimento que frequentava).
Foi depois do 5.º ano (equivalente, agora, ao 9.º de escolaridade ainda que diferente em conteúdos) que se terão manifestado as tendências poéticas do meu pai. Admito isto com base no facto de não lhe conhecer qualquer texto manuscrito de entre o que deixou como espólio. Foi no despontar da adolescência que as musas o terão inspirado.

O meu pai sempre foi um bom conversador, extrovertido sem exageros, naturalmente popular. Estas suas características contrastavam com as de um primo direito, de nome José Luís, um pouco mais velho, que frequentava, também, o seminário – dois ou três anos mais à frente – tendo acabado por ser ordenado padre. Este era sorumbático por natureza, embora poeta e grande orador sagrado. Não tão brilhante nos estudos quanto o meu pai, tinha, contudo, maiores certezas quanto à sua vocação sacerdotal.

Quando ainda estudantes, nas férias de Verão, vinham passar o merecido repouso escolar à Fajã Grande. De manhã, a sua obrigação era assistirem à missa, acolitando o pároco da freguesia. Para tanto, vestiam-se com casaco e calça negra e camisa de cabeção gomado, cobrindo a cabeça com o regulamentar chapéu de feltro negro também. Como seminaristas tinham o dever de se distinguirem dos conterrâneos que trabalhavam na terra para ganharem, com o suor do rosto, o pão que haviam de servir em casa. Afinal, a sua seara era outra e para pastores se preparavam.
Acabada a missa, era usual irem ambos dar um passeio pela rua Direita e Via de Água, rondando pelo porto velho, o porto novo, rumando à Tronqueira. Era curto o passeio, mas dava para falar um pouco de tudo – mais o meu pai, que o outro limitava-se a ouvi-lo com ponderado silêncio. Pelo caminho iam encontrando este e aquele que o meu progenitor prontamente cumprimentava com efusão.
Certa vez, lá para as bandas do porto velho, depois de terem cruzado com um conterrâneo, perguntou o meu pai ao primo José Luís: - Ora diz-me cá uma coisa! O teu chapéu terá sido mais caro do que o meu?
Espantado, arrancado aos seus profundos pensamentos, o bom José Luís respondeu: - Não, Manuel Luís. Por certo, não foi. Mas qual a razão de tal pergunta agora?
- É que eu tiro o meu para cumprimentar esta gente que por nós passa e nos dá a saudação e tu nem o gesto fazes para fingir que vais tirar o teu, daí julgar que alguma diferença teriam os nossos chapéus!
Era assim, o meu pai! Espontâneo, franco, aberto ao mundo e aos outros.

No seminário ficaram famosas, durante alguns anos, as sabatinas nas quais participou. Era ágil nas respostas e sabia esgrimir os ataques oratórios, dando forma a um raciocínio rápido, sagaz, de aguda perspicácia para descobrir os pontos fracos do oponente. Para ele a Lógica e a Retórica andavam de mãos dadas de modo a servirem-se mutuamente. Desta forma, passados os primeiros anos, granjeou fama no seminário e o estatuto de bom estudante permitiu-lhe entregar-se a leituras mais profundas e afastadas dos temas programáticos. Pelos dezassete ou dezoito anos tinha, até, permissão para, depois de cumpridos os deveres religiosos, frequentar certos círculos literários e tertúlias de Angra do Heroísmo. Foi então que conheceu Vitorino Nemésio acabado de chegar de Paris. Nunca foram íntimos, mas tê-lo-iam sido se outros caminhos a Vida tivesse proporcionado ao meu pai. Contemporâneo e integrante das mesmas tertúlias foi Dutra Faria – que mais tarde se tornou notável, em Lisboa, pelo incondicional e sabujo apoio que deu ao Estado Novo.
Uma tertúlia e grupo literário que na época tinha relevo na velha cidade dos capitães-generais, sede de bispado dos Açores, era a de Os Prelúdios, revista mensal que publicava os trabalhos dos estudantes de Angra, mais dados às letras. Por detrás dela estava o poeta Gervásio de Lima, natural da Terceira, e, entre outros, Serafim de Chaves, distinguido nos jogos florais de 1924, que chegou a oferecer ao meu pai um pequeno livro de poemas com dedicatória bastante lisonjeira.
Para além das influências locais e da época, como poeta, o meu progenitor leu, de certeza absoluta – por ainda conservar em meu poder exemplares autografados – António Feliciano de Castilho, Almeida Garrett, Ramos Coelho e António Correia de Oliveira, para não referir, por ser demais evidente, Luís de Camões e Bocage.

Julgo que os anos de maior intensidade produtiva, enquanto poeta, na fase final da adolescência, terão sido entre 1924 e 1926; frequentaria, então, o oitavo ano do seminário. Tinha já recebido, nessa altura, as chamadas ordens menores ou primu tonsura, havendo passado do chamado ano filosófico para o nono e último do curso durante o qual os estudos se viravam para a Teologia.
A vida religiosa no seminário não era fácil e exigia sentido de disciplina. O meu pai ou tinha-o por estrutura natural ou por o haver adquirido com o treino e rigor que a si próprio sempre impôs. Foi nos jejuns e abstinências que adquiriu capacidade para se alimentar frugalmente, faculdade que bons serviços lhe prestou, alguns anos mais tarde, como à frente relatarei.

No fim do primeiro trimestre do nono ano, por altura do conselho escolar, o primo José Luís, já então sacerdote e professor de canto coral no seminário, avisou o meu pai de que havia ficado decidido enviá-lo para Roma após a conclusão do curso, em Setembro, para frequentar a Universidade Gregoriana e ali obter a licenciatura em uma das várias áreas por lá ministradas. Os custos seriam suportados pela diocese de Angra já que os meus avós não possuíam rendimentos suficientes para manter um filho tão longe de casa.
Em face desta nova e inesperada situação o meu progenitor teve um rebate de consciência, pois não admitia ir gastar tanto dinheiro à diocese quando, efectivamente, tendo vocação para ser seminarista não a tinha para ser padre e ir para Roma conseguir uma licenciatura para, depois de estar na posse de um diploma, se desvincular da vida sacerdotal. Era, segundo o que me afirmou, uma desonestidade que não calhava com a sua maneira de ser e de proceder.
Depois de ponderar com cautela a atitude a assumir, resolveu dar a conhecer junto dos responsáveis eclesiásticos a decisão de abandonar o seminário pelas razões que relatei. O bispo de Angra – que o ouviu atentamente – para além de lhe elogiar a honestidade, considerou que se tratava de uma crise passageira e que, por isso, poderia contar com o apoio da Igreja Católica onde estivesse e necessitasse, pois, é necessário esclarecer, nessa altura, por força do anticlericalismo republicano, o Estado não reconhecia qualquer habilitação literária aos ex-seminaristas. Desta forma, o meu pai nada mais possuía do que o exame da 4.ª classe feito com distinção!

Dada, por carta, a notícia para casa respondeu-lhe, na volta do correio, a mãe – em longa epístola que ainda guardo – que se considerasse órfão a partir daquele momento!
A sensação de frustração provocada na minha avó foi brutal, incapacitando-a de compreender um acto de honestidade do qual só se deveria orgulhar, mas a vaidade humana é uma terrível armadilha e ter um filho padre era, naqueles anos, um motivo de prestígio social e uma excelente solução prática para quem vivia tão longe de tudo, pois poderia tornar-se no pilar de sustentação das irmãs, levando-as para as paróquias onde fosse exercer o múnus sagrado. Tal como era hábito na época, uma, ficar-lhe-ia a cargo em permanência para o servir e governar a casa paroquial; às restantes ser-lhes-ia fácil encontrar marido com posição a condizer com o exercício sacerdotal do futuro cunhado. Sonhos e soluções construídos no vazio ruíram com a decisão inabalável do meu pai.

Da ilha Terceira partiu para Lisboa, com uma pequena mala de roupa, uma carta de recomendação do bispo de Angra e alguns cobres doados pelos professores do seminário. Vinha ao encontro de novas e bem mais duras realidades. Corria o ano de 1927. A ditadura militar estava no auge, o custo de vida disparava para valores assustadores, as assembleias de militares – em particular as dos tenentes – impunham condições aos ministros que procuravam gerir a situação, agradando a uns e a outros.
A carta recomendava a aceitação do meu pai como professor num colégio particular, dirigido por um laico, mas realmente dependente do patriarcado. Era o Colégio Liceu de Sintra, a funcionar num lindo palacete na zona de S. Pedro, no começo da encosta da serra. Seria pequeno o salário, já que receberia alojamento e alimentação em troca de dar aulas de Língua Portuguesa e da inscrição nos exames do Liceu Pedro Nunes, em Lisboa, quando fosse tempo de os fazer.
Situação paradoxal e complexa: ser mestre e colega dos alunos a quem ensinava. Só assim conseguiria habilitações oficiais que lhe dessem a possibilidade de prosseguir estudos superiores. Esse era o sonho.
As agruras da vida iam começar, dando corpo ao soneto premonitório que um ano antes havia publicado, com o pseudónimo de Manuel Avelar, em A Mocidade, ainda em Angra.

Nosso viver é árduo sofrimento
Que atinge a alta nota da tristeza;
Vai minando veloz e com largueza
As ilusões, deixando o desalento…

Pois se a vida é um sonho de incerteza
- Como de espr’ança pode haver contento?
Nela encontrar podemos, só, aumento
De triste desengano e de torpeza…

Como qual borboleta entontecida
Que vagueia contente, de flor, em flor,
Assim é nossa vida de amarguras!

Pois pretende e procura, esvaecida,
O remédio que só em ti, Senhor,
Se encontra, para as nossas desventuras…

Foi nesse ano de 1927, no Colégio Liceu de Sintra, numa festa lá acontecida, que o meu pai conheceu a minha mãe. O enamoramento foi discreto, mas imediato. Ele ainda não tinha feito vinte anos e nem ela os dezanove. Por estranha coincidência, também a minha mãe nascera a 4 de Dezembro.
Uma nova etapa da vida do meu pai estava a começar.