terça-feira, maio 1

3 - No centenário do meu Pai



Todo o filho, diz-se, é uma bênção para a sua mãe (infelizmente nem sempre foi assim ao longo dos tempos, porque, o principal é que seja desejado).
O meu pai, para além de uma bênção, foi uma excelente prenda para a minha avó, pois, num tempo e numa localidade em que os aniversários natalícios correspondiam só e somente ao dia em que se completava mais um ano de vida, ela foi mãe pela primeira vez. Mãe do meu pai. Foi no dia 4 de Dezembro de 1907. Fazia, então, 22 anos.
Natural da Fajã Grande, o seu nome de solteira era Maria Dias de Avelar. Pelo casamento com o meu avô, deixou “cair” o sobrenome Avelar e ficou Maria Dias de Fraga. Eu e a minha irmã – continentais e lisboetas – conhecíamo-la por avó Dias, ao contrário dos meus primos que sempre a trataram por avó Fraga.
Ao meu pai, no dia do baptizado – altura em que se procedia ao registo do nascimento, como era comum na época – foi posto exactamente o mesmo nome do seu pai, Manuel Luís de Fraga, por isso foi Júnior. Por ter sido o primogénito, esqueceram-se de lhe colocar o sobrenome da mãe. Não sei exactamente qual o motivo, mas o certo é que se encarregou de corrigir o lapso e, ao longo da vida, adoptou, em muitos dos seus escritos jornalísticos e poéticos, o pseudónimo de Dias Avelar.
Nasceu saudável, robusto e com físico para sobreviver à mortalidade infantil da época. Trazia só um pequeno defeito: na mão esquerda, a meio da falange do dedo mínimo, tinha implantado um outro que não articulava. Era uma excrescência desnecessária e inútil. A minha avó – e isto dá bem a noção da força e da coragem daquela mulher – com uma tesoura desinfectada, quando o meu pai ainda tinha poucas horas de nascido, procurou o ponto ósseo de inserção do dedo desnecessário e cortou cerce o que estava a mais. Fez-lhe um penso com os unguentos da época, e entregou à graça de Deus – como naquelas ilhas era costume dizer – a cura da amputação feita. Rapidamente sarou e o que ficou foi um pequeno alto semelhante a uma verruga… coisa que nem se notava!
Na freguesia não havia médico e se houvesse na ilha, estaria em St.ª Cruz, a muitas horas de viagem pelo belíssimo interior, os chamados matos.

Cresceu saudável o meu pai, até ter sarampo, que curou com os cuidados tradicionais, mas que, por sua culpa – foi brincar para o chafariz fronteiro à casa paterna – na fase de convalescença, lhe trouxe uma bronquite asmática da qual nunca mais se livrou, embora eu não tenha assistido a qualquer crise de falta de ar, por razões que mais à frente relatarei.
A vida do casal – Maria e Manuel Luís – corria lenta e ao ritmo do trabalho rotineiro, mas o meu avô era um homem de ambições; viver das poucas terras que possuía não lhe agradava e essa foi a razão que o levou a, depois de novamente engravidar a minha avó, partir para os EUA, em busca do pecúlio que lhe daria para mudar o estatuto herdado. Foi, e só voltou cinco anos depois. Em 27 de Março de 1909 nasceu a minha tia e madrinha a quem a mãe pôs nome igual ao seu – Maria Dias de Fraga. Ficaram os três a viver na Fajã Grande do dinheiro que chegava da Califórnia, do peixe pescado no mar, logo ali ao fim da rua, da carne do porco que na pocilga comia batata branca e os restos das refeições da família e das rendas das terras que o casal tinha suas. Não sendo fácil, também não era preocupante o dia-a-dia.

O meu pai habituou-se a ter toda a atenção da mãe nesses cinco anos que lhe terão parecido uma vida longa. Os três entendiam-se maravilhosamente e a minha avó era pessoa dada a falar – o que estava no extremo oposto do marido, que só abandonava os seus longos silêncios por necessidade ou por achar conveniente – facto que terá, para além dessa coisa maravilhosa que se chama genética, desenvolvido no meu progenitor o saudável hábito de conversar, colocando-o nos antípodas da postura paterna. Nos seus cinco ou seis anitos, o menino Manuel Luís deixava as senhoras – novas e velhas – da freguesia verdadeiramente extasiadas tal era a sua desenvolta oratória. Achavam-lhe graça e era já tido por uma criança inteligente.

O regresso do pai, vindo dos EUA, foi para ele um pequeno choque que sempre referiu ao longo da vida. De repente era substituído por um cavalheiro, chegado não sabia de onde, perante quem havia de estar calado, guardando um silêncio respeitoso. E tinha de lhe chamar pai! Adaptou-se a custo.

Ia a caminho dos sete anos e, pelo mês de Março, nasceu-lhe outra irmãzinha a quem se prendeu com grande ternura.
É curioso que entre ele e Maria havia a cumplicidade dos anos em que haviam sido o alvo de todas as atenções da mãe. Dele para Águeda – assim foi baptizada a terceira descendente do casal Fraga – havia um grande carinho, a ponto de me recordar ter ouvido o meu pai afirmar ser aquela era a sua irmã favorita.
De todos os restantes irmãos – mais três – eram as duas que se lhe seguiam em idade as que tinham permissão de o tratar por tu… aos outros estava reservado o distante e cerimonioso tratamento por senhor! Foi muito cedo que o meu pai desenvolveu um fortíssimo sentido de autoridade e respeito.

Por essa altura – em 1914 – terá ido frequentar as aulas do velho professor de letras e números que habilitava com o exame da chamada 3.ª classe. Era, segundo recordo ouvir contar, um bom homem, distraído, que muitas vezes procurava por todo o lado, com grande afã, os óculos de ver perto, afinal deixados na testa por distracção. Nessas alturas as risadinhas dos gaiatos eram incontidas na pequena sala onde todos iam aprendendo o modo de conhecerem o mundo sem saírem daquele lugarejo perdido nas lonjuras do Atlântico. Manuel Luís sabia as lições, destacando-se dos outros seus companheiros.
Aos domingos, quando toda a família ia, enfarpelada a rigor, assistir à missa, o primogénito chegava a casa e repetia, para quem o quisesse ouvir, o sermão do celebrante, quase tintim por tintim, com todas as explicações bem percebidas e sabidas. O petiz era, realmente, fora do comum. Contudo, isso não o livrava dos pequenos trabalhos agrícolas que uma criança podia executar: carregar com os fardos de feno para fazer a cama das vacas, entretanto compradas com as economias trazidas da Califórnia. Mas não só para vacas deu o labor de cinco anos nos EUA.
O meu avô, para além de adquirir terras de lavoura, mandou construir duas azenhas, que ainda lá estão – uma a seguir à outra – na ribeira das Casas. Isso deu-lhe estatuto na freguesia e na ilha, pois passou a pertencer ao pequeno grupo de cidadãos pagantes de contribuição industrial. Não se alterou a vida da família, mas o desafogo era maior.

No ano de 1917, a 7 de Outubro, nasceu o primeiro irmão do meu pai: o tio Tobias, o último a falecer, com a idade de oitenta e oito anos. Estaria, por essa altura o meu progenitor a acabar a 3.ª classe e não mostrava grande vontade, nem empenho, nos trabalhos agrícolas ou de moagem.
O padre da paróquia, vendo-lhe a inteligência no olhar, sugeriu que a criança fosse a St.ª Cruz submeter-se ao exame da 4.ª classe para, mais tarde, poder ser admitido no seminário de Angra do Heroísmo. Estava ali, quase pela certa, uma vocação sacerdotal. Semelhante parecer era o do mestre-escola que o achava habilitado para se sujeitar à «dura» prova a fazer na vila.
Em face de tantos conselhos e pareceres e sob os rogos da minha avó, lá se dispôs o Manuel Luís Sénior a levar o seu rebento até St.ª Cruz. Era a primeira vez que o meu pai saía para tão longe da sua terra natal.

Para chegar à vila havia que atravessar a ilha de lés a lés e todo o percurso era feito a pé. Na ida, pai e filho não trocaram entre si qualquer palavra. Depois de se alojarem em casa de familiares, na manhã seguinte, o meu pai fez as provas que lhe cabiam.
Devo dizer que tais exames constituíam um acontecimento, naquela época, mesmo na vila de St. ª Cruz: tratava-se de uma efectiva mudança de estatuto e só a ela se sujeitava quem se destinava a continuar os estudos fora da ilha das Flores.
Segundo parece, a pequena sala de aulas da escola encheu-se com curiosos que queriam avaliar das qualidades do pretendente a «gente letrada». Foi brilhante a prova oral e o meu pai saiu aprovado com distinção.
Se a honra era grande para o candidato menor não era para os familiares, pois passavam a contar com alguém com um diploma só obtido na sede do concelho. Todos os conhecidos e parentes felicitavam o meu avô pelo brilhantismo do meu pai.
No regresso, mais seguro de si, o pequeno Manuel Luís optou por conversar com o seu sisudo progenitor. Falaram mais alto os genes maternos e a vaidade da pequena grande vitória. Iam largos os quilómetros andados e o que devia ser um diálogo não passava de um longo solilóquio bruscamente interrompido pelo meu avô que, com secura, disparou:
- Passado com distinção… Como se isso valesse alguma coisa!
Emudeceu o meu pai e toda a satisfação teve de ser guardada para a manifestar quando estivesse com a mãe.
Muitos anos mais tarde, relembrando o episódio, dizia-me que, na altura lhe custara a quase crítica do pai, mas, recordando-o tal qual ele era, sabia, então, a imensa satisfação que lhe havia dado e, acima de tudo, o orgulho que lhe proporcionara por chegar à Fajã Grande e, na roda das conversas dos homens e pais, ser alvo de atenções de todos que o felicitavam. O nível de exigência do meu avô era muito grande – para si mesmo e para os filhos!

Depois de conseguido o diploma oficial de aprovação na instrução primária podia o sacerdote da Fajã tratar de tudo para o ingresso do pequeno Manuel Luís no seminário de Angra. Corria o ano de 1918.
A despedida foi difícil, dolorosa, mas cheio de esperança em si e desejoso de descobrir novos horizontes, lá partiu o meu pai para a ilha Terceira. Com ele levava os sonhos da mãe para quem a vaidade de ter um filho padre era maior que tudo, pois ser sacerdote da Igreja Católica naqueles tempos – mesmo levando em conta todo o anticlericalismo da República – era, nos Açores, possuir um elevado estatuto social pelo ascendente que se passava a ter sobre os paroquianos. Além de tudo o mais, muita gente tinha a certeza da excelente figura que o Manuel Luís ia fazer no meio estudantil de Angra do Heroísmo.

Não sei se o sacerdote da Fajã Grande que tanto papel teve na entrada do meu pai no seminário se chamava Francisco Vieira Bizarra, mas presumo bem que sim, pois encontrei publicado no jornal O Florentino, datado de 1924 (talvez escrito em Março), este soneto dedicado à sua memória onde se pressentem, na temática, as influências de Camões e o peso de uma infantilidade que outros mais tardios já não têm:

Guiavas tu bondosa e docemente,
O rebanho que te fora confiado,
Como faz bom pastor com alegria
Às ovelhas que conduz ao prado

Mas a morte cruel, impiedosa,
A ninguém no mundo há que isente,
Levou-te d’entre nós, levou-te ao Céu,
Onde repousarás eternamente

Sim!... no céu onde subiste descansa,
Mas de nós nunca percas a lembrança,
Junto a Deus que por nós intercede

Pede-lhe para o teu rebanho
Um manancial de graças tamanho
Onde, de amor, sacie a sede.

Tendo procurado entre o seu espólio escrito, este soneto é o mais antigo que encontrei, mas não acredito que só aos dezassete anos haja iniciado as suas tentativas literárias. Por certo, terá rabiscado as primeiras quadras bem mais cedo. O estudo das humanidades e da literatura ter-lhe-ão mostrado que, afinal, as saudades da terra, da família e dos lugares que estimava podiam ser expressas em frases curtas, com rima e métrica. Mudou-lhe a Vida certos hábitos, mas não lhe destruiu a alma de poeta.