Embora Portugal seja dos Portugueses, há em Portugal espaços públicos e espaços privados. Assim se convencionou no Direito e assim aceitamos como verdadeiro. Por conseguinte, há quem não tenha mais de seu do que as ruas e caminhos por onde anda - os chamados espaços públicos, porque tanto é desse como de outro qualquer - e há aqueles que detêm pequenas ou grandes propriedades que, no dizer bem expressivo dos Brasileiros, pisam o «seu chão».
Não quero entrar em divagações desnecessárias, mas não me escuso a recordar quão mal enganados estão todos os que julgam possuir, realmente, uma propriedade sua! Na verdade, não têm nada! Ou melhor, têm tanto quanto todos aqueles que nada têm. E isto é tão simples quanto a impossibilidade de qualquer cidadão português poder vender ao Estado espanhol, por exemplo, um pedaço de terreno que passe a ser território de Espanha. Ninguém pode vender Portugal, mesmo que seja dono de todo o território português e de tudo o que está construído sobre o solo nacional! Isto prova à saciedade que, como dizia, ninguém é realmente dono daquilo que julga que lhe pertence. Tudo é nosso e, simultaneamente, de nada somos donos.
Vem isto a propósito dos parques de estacionamento automóvel que alguns municípios - nomeadamente o de Lisboa, Loures, Cascais e outros por esse país fora - resolveram municipalizar, deixando as ruas de serem espaços públicos para serem pertença das Câmaras. Ao tomarem tal decisão - o Estado e os municípios - reforçaram o seu direito de propriedade sobre algo que já lhes pertencia. Mas não o fizeram inocentemente! O seu intuito foi bem claro: passar a extorquir aos automobilistas, utilizadores do espaço de estacionamento dos seus veículos, gordas quantias pelo aluguer de um tempo determinado de uso de um espaço que, até aí, era público. Mas o requinte da vigarice foi mais longe: venderam o direito de fiscalização e da consequente multa por infracção a empresas ditas municipais, isto é, alienaram o poder coercivo e coactivo, que ao Estado compete ou a organismos que dele fazem parte ou o integram, a uma nova entidade distinta das chamadas forças de segurança e manutenção da ordem pública. Neste caso, tornaram privado o que deve ser exclusivamente público. Absolutamente inaudito! É, com toda a razão, uma vigarice, digna dos mais insignes trafulhas. Vejamos.
A manutenção, de todo o tipo, de espaços públicos é uma obrigação do Estado - que, por razões operativas, a pode delegar, na totalidade ou na parte, nos municípios e nas juntas de freguesia - cobrando aos cidadãos os respectivos impostos para fazerem face às despesas necessárias. Assim, é suposto que, cada um de nós, quando liquida a carga fiscal que o Estado lança sobre tudo e sobre todos, está a pagar, também, o direito a estacionar o seu veículo nos espaços públicos a isso destinados. É justo que assim seja. Igualmente justo é que quando o cidadão estaciona o seu veículo em qualquer local que, por força dos códigos respectivos, lhe seja vedado pague a respectiva coima passada pelo agente do Estado e pelo Estado investido com a autoridade para esse efeito. Mas a vigarice começa quando para estacionar o veículo em local público apropriado lhe é exigido um pagamento adicional que corresponde a um aluguer temporário, visto que, se não pagar novo aluguer no final do tempo previsto, incorrerá o incauto cidadão, em pesadas coimas que poderão chegar à retenção do uso do seu próprio veículo. Isto brada aos céus! Isto deixa de fazer do Estado uma pessoa de bem, para o tornar num digno descendente de qualquer salteador do pinhal de Leiria, dos tempos que já lá vão (e sem ofensa para os honestos Leirienses, claro). Mas, como é sabido, a «coisa» não acaba aqui. É que, se for bem gerida a empresa municipal a quem é «alugado» o direito de vigiar e multar os cidadãos, poderá ela auferir rendimentos que serão distribuídos, não faço ideia como, pelos respectivos accionistas (se se tratar de uma sociedade anónima) ou pelos sócios (se for uma empresa de responsabilidade limitada) ou, como parece que é, pelo município já que se trata de uma empresa municipal. Claro que, entretanto, os respectivos administradores vão auferindo, à custa da dupla ou tripla apropriação de um espaço público, de chorudos vencimentos! E, claro está, dá-se a uns pobres empregados, contratados a título precário - aqueles que andam a passear a sua ignorância pelas ruas das cidades, segurando uma máquina electrónica de passar coimas -, a falsa ilusão de serem representantes «da autoridade do Estado ou do município». E isto é o pior, porque, como bem diz o velho provérbio português «se queres conhecer o vilão, mete-lhe a vara [da Justiça, entenda-se] na mão».
Se tudo isto não é uma vigarice, a que será que deveremos passar a chamar tal coisa?